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ENSAIOS
As Liberdades de um Concerto Revolucionário
Autor:Jorge de Almeida
04/mai/2023

Representação alegórica de Beethoven de Kurt Otto Bingler

[2006] em linoleogravura.

 

 

Inspirado pelo espírito revolucionário da época e pelos caminhos abertos por seus antecessores, Beethoven [Ludwig van Beethoven, 1770-1827] se rebelou (“heroicamente”, como ressaltam alguns biógrafos) contra o papel social tradicionalmente atribuído aos músicos e a outros artistas. Seus mestres vienenses, Haydn [Joseph Haydn, 1732-1809] e Mozart [Wolfgang Amadeus Mozart, 1756-91], haviam passado boa parte da vida como criados ou funcionários de casas aristocráticas, embora tenham buscado, a partir de meados da década de 1780, fugir a esse destino (o aposentado Haydn, com suas lucrativas viagens a Londres; o jovem Mozart, com sua produção final: as óperas compostas para o Teatro de Praga e a iluminista Flauta Mágica, produções não patrocinadas pela corte).

 

Essa busca por autonomia, característica daqueles tempos conturbados, acabou gerando um interessante debate entre historiadores, críticos e sociólogos. Arnold Hauser [1892-1978], autor de uma monumental história social da arte, identificou nesse anseio o movimento histórico de progressiva afirmação dos valores da burguesia ascendente, em oposição aos ideais aristocráticos que ainda organizavam a produção artística e musical:

 

A mudança final da composição objetiva, feita por encomenda, para a composição como confissão pessoal ocorre algures entre Mozart e Beethoven, ou, mais precisamente ainda, no início da maturidade de Beethoven, ou seja, imediatamente antes da Eroica — numa época, portanto, em que a organização de concertos públicos já está plenamente desenvolvida e o comércio musical, que começa a ganhar terreno com a necessidade de repetidas audições, forma a principal fonte de renda do compositor.1

 

Segundo Hauser, é nesse contexto que devemos entender a célebre “academia musical” organizada por Beethoven na noite de 22 de dezembro de 1808. Uma academia [Akademie] era um evento público com cobrança de ingressos cuja renda era destinada a alguma instituição ou aos próprios músicos. A ideia já era corrente em cidades como Paris e Londres, mas tinha chegado tardiamente a Viena — não a tempo de salvar da pobreza Mozart e outros tantos músicos. Ao organizar o evento, as expectativas de Beethoven eram altas, mas logo surgiram vários problemas. Naquela mesma data, o Kapellmeister Antonio Salieri [1750-1825] — compositor italiano incorporado à corte austríaca, conhecido atualmente menos por sua música do que por sua suposta rivalidade com o genial Mozart — anunciou uma outra academia beneficente, em prol das viúvas e órfãos dos membros filiados à Sociedade dos Músicos de Viena. Os melhores músicos da cidade decidiram então, por livre pressão ou vontade, tocar no concerto de Salieri, restando a Beethoven compor o coro e a orquestra de seu evento com músicos amigos e com profissionais menos qualificados.

 

O Theater an der Wien [c. 1810] foi inaugurado em 1801 e permanece até os dias de hoje como uma das principais casas de espetáculos de Viena. Atualmente está em reforma, com previsão de reabertura em 2024.

 

Para piorar a situação, Viena amanheceu gelada a três dias do Natal. Mesmo assim, o Theater an der Wien (inaugurado em 1801, às margens do rio Wien, o que explica seu nome) estava razoavelmente cheio. Idealizado pelo impresario Emanuel Schikaneder [1751-1812] — conhecido pelas encomendas que fez a Mozart —, o teatro era uma bem-vinda novidade numa capital onde a maioria das apresentações musicais era realizada nos salões das mansões aristocráticas ou nos grandes teatros controlados pela corte do Império. Os acordes dissonantes da economia e da política vienense, no entanto, logo cobraram seu preço. Com graves problemas financeiros e dívidas geradas por sua construção luxuosa, o teatro acabou sendo comprado, em 1807, por um grupo de aristocratas liderados pelo conde Ferdinánd Pálffy de Erdöd [1774-1880], um dos mais importantes patronos de Beethoven, que assegurou ao músico uma cadeira cativa próxima ao palco para compensar os efeitos de sua já avançada surdez.

 

   
Emanuel Schikaneder, fundador do luxuoso Theater an der Wien, e conde Ferdinánd Pálffy de Erdöd, patrono de Beethoven e principal comprador do teatro após a falência de seu idealizador, em 1807. O príncipe Nikolaus Esterházy II doou vultosa quantia para a Akademie de Beethoven, realizada no teatro na noite de 22 de dezembro de 1808.    

O longo concerto daquela fria quinta-feira ficou célebre por uma série de razões: a importância histórica das obras ali apresentadas (Beethoven anunciou todas elas como inéditas, embora algumas, como o Quarto Concerto para Piano, já tivessem sido ouvidas em reuniões privadas); a reação dividida dos ouvintes, muitos deles amigos de Beethoven (o compositor Johann Reichardt [1752-1814] chegou a dizer que o concerto teria demonstrado ser possível “sofrer pelo excesso de coisas boas, ainda mais se elas são tão poderosas”); as críticas publicadas na imprensa (o Allgemeine musikalische Zeitung chegou à conclusão de que “julgar todas essas peças após uma única audição, especialmente considerando a linguagem das obras de Beethoven, sendo a maioria delas tão grandes e longas, é absolutamente impossível”); e, finalmente, a controvérsia sobre o sentido de eventuais mensagens de cunho político (os ideais revolucionários se espalhavam pela Europa e as Guerras Napoleônicas [1803-15] estavam na ordem do dia) reconhecidas pelo público nas obras compostas para a ocasião.

 

No fim das contas, a academia organizada por Beethoven em busca da tão esperada “autonomia burguesa” gerou uma renda considerável, mas não graças aos ingressos pagos pelo público. Comovido com os vários problemas daquela noite, o príncipe Nikolaus Esterházy decidiu fazer a Beethoven uma doação de 100 moedas de ouro, uma pequena fortuna na época, que infelizmente seria corroída pela inflação do ano seguinte, causada pela ocupação de Viena pelas tropas de Napoleão (que já havia decepcionado Beethoven ao trair os ideais democráticos da Revolução [Revolução Francesa, 1789-99] e se autoproclamar imperador, como testemunha o violento rasgo na dedicatória do manuscrito da Terceira Sinfonia, a Eroica).

 

   

                Jornal Allgemeine Musikalische Zeitung com a programação da Akademie de Beethoven na noite de 22 de dezembro de 1808, e as capas das primeiras edições das partituras da Quinta e Sexta Sinfonias, preservados na The Lobkowicz Collections, República Tcheca.

 

   

Os resultados práticos da academia sugerem que a tese de Hauser sobre o avanço dos ideais burgueses na esfera artística, mesmo que seja correta de um ponto de vista geral, deve ser lida com cuidado em relação a casos específicos. A socióloga Tia DeNora, por exemplo, baseada em novas fontes e estudos sobre a vida musical de Viena, argumentou com razão que o relacionamento de Beethoven com seus patronos aristocratas foi bem melhor e mais extenso do que pensamos. A aristocracia não era um bloco político ou cultural homogêneo, e as disputas entre as diversas facções afetavam o tipo de música (mais ou menos complexa, galante ou barroca, grandiosa ou agradável) apresentada nos salões dos nobres austro-húngaros. Em seu livro, DeNora investigou os pressupostos sociais que possibilitaram a criação da imagem de gênio heroico e rebelde que hoje atribuímos a Beethoven, e também as razões pelas quais o autor de uma obra tão complexa superou em reconhecimento póstumo outros compositores bem-sucedidos da época. Seus argumentos são pertinentes, mas suas conclusões acabam deixando de lado o “valor intrínseco” (conceito rejeitado por sua concepção de sociologia da cultura como sendo arbitrário e ilusório) da própria obra musical de Beethoven; além de não levar em consideração o contexto mais amplo daquele agitado momento político da história europeia. Arrogante e estrategista, o Beethoven criado por DeNora parece agir de forma obsessiva em busca de reconhecimento pessoal, pois continuava a depender em larga medida do apoio de patronos aristocratas, apesar de sua atitude “radical”: “Beethoven é frequentemente visto como um compositor ‘revolucionário’, uma força central no desenvolvimento da música. O termo revolucionário é forte, mas impreciso como indicador do lugar de Beethoven na história da música; além disso, não explica quase nada”.2

 

Um outro caminho para a compreensão da relação tensa entre Beethoven e seu tempo foi esboçado pelo filósofo e músico Theodor Adorno [1903-69]. Nas anotações de seu livro sobre Beethoven, infelizmente inacabado, Adorno recupera a imagem do compositor como expoente histórico do novo indivíduo burguês, aproximando dialeticamente o ideal da autonomia do artista e o difícil desenvolvimento da própria música em direção à sua emancipação. Para Adorno, a relação de Beethoven com o seu tempo deveria ser interpretada, mais do que à luz de sua biografia ou dos relatos de seus contemporâneos, a partir dos conflitos e tensões presentes na configuração original de suas composições: a própria forma das obras seria capaz de revelar, para ouvidos atentos, o substrato histórico ali sedimentado. Dialogando a cada compasso com os problemas de sua época (a peculiar notação “meilleur” [melhor], onipresente nos manuscritos rabiscados, é um testemunho desse esforço), Beethoven responderia musicalmente aos desafios históricos daquela época, já presentes no “trabalho de composição” necessário para a criação de suas obras, que seriam “revolucionárias” em um duplo sentido: artístico e político. Por isso, quando Adorno discute o “caráter revolucionário burguês” intrínseco à música de Beethoven, ele insiste: “Vamos refletir sobre Beethoven. Se ele já é o protótipo da burguesia revolucionária, é ao mesmo tempo o protótipo de uma música inteiramente autônoma do ponto de vista estético, uma música que escapou da tutela social, que não é mais servil”.3

 

Ou seja, o caráter “burguês revolucionário” da música de Beethoven poderia ser encontrado nas próprias obras, o que ajuda a entender melhor as contradições do heroísmo coroado no conturbado concerto de 1808. O longo programa daquela noite se dividia em duas partes, e as discussões acaloradas sobre a música estranha e complexa que ali se ouvia se concentraram na estreia de duas grandes sinfonias: a Sexta e a Quinta (a ordem da apresentação das obras no concerto gerou confusão sobre os números), consideradas por muitos críticos, desde então, como antagônicas em forma, teor e intenção. Cabe então comentar as duas sinfonias em conjunto, para pensar se há algo que as une.

 

A Quinta Sinfonia em Dó Menor, Op. 67, foi considerada pelo escritor e crítico musical E. T. A. Hoffmann [1776-1822], contemporâneo de Beethoven, um momento decisivo na busca da autonomia da música. Em uma resenha polêmica, que mudou o paradigma crítico da época, ele considera a obra em termos puramente musicais, atribuindo à Sinfonia um sentido “filosófico”, na medida em que a obra “abandona um sentimento determinado para entregar-se a um anseio indizível”.4 O leitor de Hoffmann buscaria em vão qualquer referência explícita à Revolução Francesa e a seus ideais, embora eles ecoem na referência romântica aos “tons jubilosos”, às contraditórias dores de “esperança e amor” de “extasiados visionários”. De um modo muito “alemão”, as tensões revolucionárias são transportadas para o mundo etéreo do idealismo filosófico romântico. A sublimação “espiritual” de conflitos políticos reais, cujos efeitos alcançam os reinos e principados germânicos, contrabandeia para o âmbito “puro” da forma, mediante o desejo por sua “autonomia”, os conflitos que a realidade política não consegue resolver e que os críticos da época não querem ou evitam enunciar. A resenha de Hoffmann era inspirada pelos novos meios de expressão e construção usados por Beethoven, que rompiam violentamente com o antigo equilíbrio “clássico” buscado por Haydn e Mozart. Na Quinta Sinfonia, o anseio pelo “absoluto” habitaria a própria forma: no contraste de intensidades e massas sonoras; no uso enfático do silêncio como elemento de tensão; na ousadia das modulações em longas seções de desenvolvimento; na construção de temas por meio da reiteração de motivos contrastantes; na unidade do todo, que reconfigura os movimentos isolados; no desprezo pelo predomínio da “ideia melódica”; na contraposição abrupta de timbres; e em vários outros procedimentos que podemos perceber ao longo de seus quatro revolucionários movimentos.

 

O problema é que a Sexta Sinfonia em Fá Maior, Op. 68, que abriu o concerto da academia, também apresentava as mesmas inovações técnicas, embora fosse claramente inspirada em eventos extramusicais. A primeira edição da partitura dessa “sinfonia característica” (como Beethoven a chamava em sua correspondência) deixa clara a intenção representativa: Pastorale: Erinnerung an das Landleben [Pastoral: Lembrança da Vida no Campo]. Os títulos dos cinco movimentos (dois deles interligados) delineiam o sentido geral da obra: I. “Despertar de Sensações Alegres na Chegada ao Campo”; II. “Cena à Beira de um Riacho”; III. “Em Companhia da Alegre Gente do Campo”; IV. “Raios e Tempestade”; V. “Canção dos Pastores: Sentimentos Alegres e Agradecidos Após a Tempestade”. Além disso, o “programa” afetaria o próprio material da sinfonia, unindo elementos bucólicos campestres (como os cantos dos pastores e as danças populares dos camponeses) e naturais (cantos de pássaros, murmúrio do riacho, trovões e ventos da tempestade, o sopro ameno da brisa). No entanto, uma breve frase, incluída na partitura e muito citada desde então, colocava em perspectiva o caráter figurativo da obra: “mehr Ausdruck der Empfindung als Malerey”, ou seja, mais expressão de sensações do que pintura. A natureza, cujo conceito naquela época englobava as discussões de Rousseau [Jean-Jacques Rousseau, 1712-78] sobre os vícios da civilização, deixa de ser um mero objeto de representação e passa a gerar, no sujeito, um conjunto complexo de emoções, que só a música poderia “expressar”.

 

     Do céu, Beethoven admoesta: “Amigos, não é essa nota!”; e Beethoven como Adão sendo         expulso do Paraíso, inspirado na obra de Michelangelo. As duas caricaturas são de

     Arpad Schmidhammer (c. 1920).

 

Mas eis que, ecoando os trovões do assunto, o turbilhão das interpretações posteriores surpreendeu a todos com uma inusitada reconfiguração do sentido dessas obras “heroicas” de Beethoven, trazendo à tona algo já vislumbrado anteriormente, mas que havia sido esquecido, recalcado ou mesmo reprimido pela história da recepção de suas obras. O erudito maestro John Eliot Gardiner, um dos grandes músicos da atualidade, redescobriu por acaso a obra de um musicólogo alemão pouco conhecido, Arnold Schmitz [1893-1980]. Em seu livro5 publicado em 1927, Schmitz teria levantado a curiosa hipótese de que haveria citações subversivas nas sinfonias de Beethoven. Gardiner, diretor da Orchestre Révolutionnaire et Romantique desde a década de 1990, resolveu pesquisar os manuscritos de Beethoven e os arquivos da Biblioteca Nacional da França, em Paris, onde reconheceu e identificou inúmeros desses motivos e temas.

 

A tese de Gardiner, exposta também em suas interpretações das sinfonias, afirma que, por razões não inteiramente definidas, mas que certamente tinham a ver com o ambiente político e a terrível censura em Viena, Beethoven teria inserido citações que remeteriam, para os ouvidos atentos de sua época, às perigosas ideias revolucionárias. Lembremos que o exército francês foi inicialmente recebido com aplausos pela população de Viena. Foi só após o desânimo com o violento jugo napoleônico que a Áustria retornou ao conflito, em um período de idas e vindas políticas e militares. Para Gardiner, é evidente que esse momento conturbado deixou marcas não apenas na vida, mas na produção musical de Beethoven. Em uma de suas entrevistas recentes, o maestro comenta:

 

Esta é uma música escrita em um dos períodos mais eletrizantes da revolução e da contrarrevolução na história da Europa. Os primeiros trinta anos do século XIX são um período de grande excitação. Eu penso em Francisco Goya, um contemporâneo exato de Beethoven que também, por acaso, acabou surdo. Desenhou com detalhes explícitos os horrores da Guerra Peninsular, decorrente da invasão da Espanha por Napoleão. Para mim, Beethoven está fazendo algo similar em ao menos duas de suas sinfonias, refletindo sua convicção de que os valores da Revolução Francesa, que se espalharam como um incêndio pela Europa, estavam sob ameaça e precisavam de uma defesa eloquente.6

 

Gardiner “redescobre” e comprova, citando inúmeras fontes e exemplos, a enorme influência da música francesa da época revolucionária sobre a obra de Beethoven. Compositores hoje pouco conhecidos, como François-Joseph Gossec [1734-1829], Étienne--Nicolas Méhul [1763-1817], André-Ernest-Modest Grétry [17411813], além de Claude-Joseph Rouget de Lisle [1760-1836], autor de A Marselhesa, e o grande Luigi Cherubini [1760-1842], eram estudados e apreciados por Beethoven.7 Não cabe aqui entrar em detalhes, mas Gardiner nos convence, por exemplo, de que na Sexta Sinfonia haveria um elogio às revoltas camponesas ocorridas durante a Revolução por meio de citações das obras de Méhul. Se esse subtexto fosse entendido pelos ouvintes, como soariam, em 1808, os títulos “pastorais” dos vários movimentos? Seria possível perceber um sentido alegórico no progressivo “despertar de sentimentos alegres na chegada ao campo”, na alegria incontida da “dança camponesa” que antecede a violenta “tempestade”, culminando no “canto dos pastores, após a tempestade”? Não há como saber ao certo, mas a hipótese é interessante e afeta inclusive as opções de interpretação musical, como bem demonstra Gardiner em suas gravações.

 

Na Quinta Sinfonia, as “citações subversivas” seriam ainda mais detalhadas. O famoso motivo inicial (chamado por muitos de “o motivo do destino”, com ressonâncias maçônicas), uma sequência de três notas curtas e uma nota longa que, ao ser repetida reiteradamente em diversas formas, configura o primeiro movimento e ecoa por toda a sinfonia, teria uma relação direta com o Hino do Panteão (1794), de Gossec. No movimento final, Gardiner sugere que Beethoven estaria citando, disfarçadamente, um trecho de outra canção revolucionária, o Hino Ditirâmbico, de Rouget de Lisle, conhecido também com o título de Chant du Neuf Thermidor, que traria o seguinte texto, na versão original: “Chantons la Liberté, couronnons sa statue!” [Cantemos a Liberdade, coroemos a sua estátua!]. A frase musical de Lisle sobre as palavras “La Liberté” equivale à inversão do motivo inicial da Sinfonia de Beethoven, agora com uma nota curta seguida por três notas longas: La-li-ber-té! Esse é justamente o tema que irrompe, triunfalmente, no finale da Quinta Sinfonia. Para Gardiner (que nos ensaios canta para sua orquestra “romântica e revolucionária” essas palavras, incentivando os músicos a sentir e compreender o tom político do anseio configurado musicalmente por Beethoven), os ouvintes da época certamente reconheceriam a citação, entendendo o sentido alegórico da metamorfose que atravessa a Quinta Sinfonia, caminhando do “destino” inicial para a “liberdade” final.

 

Esse apelo revolucionário estaria presente nas outras obras apresentadas naquela noite de 22 de dezembro? O Quarto Concerto para Piano em Sol Maior, Op. 58, que encerra a primeira parte do programa, tem um início surpreendente, com o piano afirmando sozinho o tema principal, indicando o sentido geral da obra: um diálogo não mais reconciliador (como ainda ocorria em Mozart), mas agora tenso, entre o solista e a orquestra, entre o indivíduo e o todo. Do ponto de vista harmônico, esse concerto é uma das obras mais complexas de Beethoven: nas seções de desenvolvimento do primeiro movimento, o piano se aventura para muito longe da tonalidade principal, e seu retorno ainda soa tenso e inconclusivo até a cadência que abre a coda. A textura das frases atribuídas ao piano se expande do muito grave ao muito agudo, e a intensidade também reflete os extremos, revelando a obsessão de Beethoven pelo desenvolvimento do instrumento nessa época. O movimento lento foi considerado por muitos, entre eles Liszt [Franz Liszt, 1811-86], como tendo uma base programática: um desacordo entre o piano tranquilo e as cordas exaltadas. Essa conversa caminha, confiante, para a reconciliação no agitado finale, um rondó no qual a alegria abre espaço para um renovado virtuosismo.

 

Em 1808, o público de Viena já reconhecia Beethoven como compositor, mas a opinião pública o havia destacado primeiro como grande e excêntrico pianista, famoso por suas improvisações e duelos com outros músicos. Afinal, seu modo tempestuoso de fazer soar o piano era muito diferente do estilo mais delicado e elegante de seus antecessores, entre eles o próprio Mozart. Uma lembrança de Anton Reicha [1770-1836] ilustra bem a diferença entre os dois mestres:

 

Beethoven tocava um concerto de Mozart e me pediu para virar as páginas. Mas eu passei a maior parte do tempo ocupado com as cordas que estouravam no pianoforte, enquanto os martelos atacavam as cordas rompidas. Beethoven insistiu em terminar o concerto, e assim eu pulava de um lado para o outro, arrumando uma corda, destravando um martelo e virando as páginas. Trabalhei muito mais do que ele naquele dia.8

 

Um incidente parecido também teria atrapalhado, na noite de 22 de dezembro, a performance do Quarto Concerto: além de quebrar algumas cordas, Beethoven, em sua agitada dupla função de regente e solista, teria derrubado duas vezes as lamparinas que iluminavam o piano, o que levou a plateia às gargalhadas. O triste espetáculo marcou o fim da primeira parte do concerto, para constrangimento dos amigos do compositor.

 

Beethoven estava acostumado, no entanto, com os frequentes desencontros com o seu público. Um ano antes, sua Missa em Dó Maior, posteriormente publicada como seu Op. 86, havia sido muito mal recebida pelo príncipe Nikolaus Esterházy, que a encomendara para uma ocasião solene. Escrevendo a um amigo, o patrono aristocrata comentou: “A Missa de Beethoven é insuportavelmente ridícula e detestável, eu nem posso me convencer de que ela possa ser tocada honestamente: estou furioso e ofendido!”.9 Conhecemos o contato do jovem compositor com o pensamento iluminista de sua época, mas sua relação com a religião (lembrando que Viena era a capital de um império católico) ainda permanece muito controversa. De qualquer modo, não encontramos em sua Missa a religiosidade espontânea que emana das obras de Bach [Johann Sebastian Bach, 1685-1750], Händel [Georg Friedrich Händel, 1685-1759] ou Haydn. Beethoven é frequentemente visto como um deísta, aquele que acredita racionalmente na existência de um Deus, mas desconfia das tradições religiosas que supostamente o representam. Sabemos que ele frequentava a maçonaria e que expressou, em um de seus cadernos, sua admiração por Sócrates e Jesus como exemplos de coerência moral e de capacidade de suportar o sofrimento com dignidade, sofrimento que o próprio compositor padecia em razão de suas desilusões amorosas e da progressiva doença, que o deixaria completamente surdo. Duas partes dessa controversa Missa, o “Gloria” e o “Sanctus”, foram apresentadas na academia de 1808, em um ambiente profano, talvez mais adequado ao ímpeto romântico que subverte o sentido religioso da obra.

 

Por fim, o longo concerto terminou com a Fantasia Coral para Piano, Solistas, Coro Misto e Orquestra, Op. 80, obra que funciona como uma espécie de compêndio de tudo o que veio antes: improvisação virtuosística, concerto para piano, música de câmara, canção, sinfonia, cantata. O aspecto variado da obra faz jus ao conceito de “fantasia”, que também evoca uma livre apropriação de diversas formas, do tema com variação ao rondó, do allegro-de-sonata às marchas e danças. A tinta das partituras ainda estava fresca, o coro, mal ensaiado, os músicos, estressados, e o público, cansado; a noite não terminou bem. A obra, no entanto, é hoje reconhecida por ter antecipado o uso do coro junto à massa sinfônica, anunciando não apenas em forma, mas também em espírito, o ideal de união da humanidade presente anos depois na “Ode à Alegria”, da Nona Sinfonia. Os ouvintes brasileiros saberão reconhecer a melodia principal, citada na última parte da peça Os Saltimbancos, adaptada com maestria por Chico Buarque. A dimensão política do texto, traduzido em plena ditadura brasileira [“Todos juntos somos fortes/ Somos pedra e somos arco/ Todos nós no mesmo barco/ Não há nada pra temer”], ecoa o apelo presente no texto original utilizado para a Fantasia, um poema de Christoph Kuffner [1780-1846], do qual destacamos os seguintes versos:

 

Quando reina a magia dos sons

E fala a palavra consagrada,

Algo de grandioso deve acontecer,

Noite e tempestade se tornam Luz.

[…] Aceitai, portanto, belas almas,

Alegremente os dons da bela arte.

Quando o amor e a força se juntam,

O favor dos deuses recompensa os homens.

 

A ideia de que a academia de 1808 pode ser pensada como resultado das contradições do período “revolucionário” de Beethoven é polêmica e tem incomodado muitos comentadores, principalmente aqueles que se sentem mais confortáveis com a concepção biográfica ou idealista do seu “heroísmo”. O musicólogo Lewis Lockwood, por exemplo, diz o seguinte sobre o finale da Quinta Sinfonia:

 

Esse finale é, às vezes, ligado ao éclat triomphal [fulgor triunfal] da Revolução Francesa, com o qual talvez pudesse ter associações para os ouvintes da época de Beethoven. Mas é certo que, em tempos mais recentes, e hoje tanto quanto antes, essa abertura transporta a imaginação do ouvinte para um plano mais elevado da experiência, incorporando e indo além de tudo o que passou.10

 

Sem dúvida, cada geração redefine com seus próprios sentidos a música do passado. O próprio Beethoven, a partir de 1809, vai rever algumas de suas posições estéticas e políticas diante das reviravoltas causadas pelas Guerras Napoleônicas e pela restauração arquitetada no Congresso de Viena (1814-15). No entanto, no caleidoscópio histórico das interpretações, cujos arranjos também espelham cores políticas, dificilmente alguém que tenha conhecido a leitura proposta por Adorno ou Gardiner pode deixar de ouvir, no destino triunfal daquelas obras apresentadas em 1808, um insistente e poderoso anseio pela liberdade, que ainda nos cala fundo, duzentos anos após o fracassado concerto de um heroico compositor em busca de respeito e autonomia.

 

JORGE DE ALMEIDA é doutor em filosofia e professor de teoria literária e literatura comparada na Universidade de São Paulo (USP).

 

1 HAUSER, Arnold Hauser. História Social da Arte e da Literatura. Trad. de Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 579. [N. A.]

2 DENORA, Tia. Beethoven and the Construction of Genius. Los Angeles: University of California Press, 1997, p. 2. [N. A.]

3 ADORNO, T. W. Beethoven, Philosophie der Musik. (Ed. de Rolf Tiedemann). Frankfurt: Suhrkamp, 1993, p. 74. [N. A.]

HOFFMANN, E. T. A. A Música Instrumental de Beethoven. (Trad. e notas de Bruno Berlendis de Carvalho). Literatura e Sociedade, São Paulo, v. 17, n. 16, pp. 132-139 (p. 132), 2012. [N. A.]

5 SCHMITZ, Arnold. Das romantische Beethovenbild: Darstellung und Kritik. Berlim: Dümmler, 1927. [N. E.]

6 “A Revolutionary Approach to Beethoven”, entrevista com John Eliot Gardiner. The New York Times, 14 fev. de 2020. [N. A.]

7 Sobre o assunto, ver Enio Squeff, A Música na Revolução Francesa (Porto Alegre: L&PM, 1989). [N. A.]

8 DENORA,Tia DeNora, op. cit., p. 175. [N. A.]

9 ALBRECH, Theodore. Letters to Beethoven and Other Correspondence: 1824–1828. Lincoln: University of Nebraska Press, 1996, p. 194. [N. A.]

10 LOCKWOOD, Lewis Lockwood. Beethoven’s Symphonies: An Artistic Vision. Nova York: Norton, 2015. [N. A.]

 

 

GRAVAÇÕES RECOMENDADAS

 

Beethoven: The Symphonies Orchestre Révolutionnaire et romantique

John Eliot Gardiner regente

Archiv Produktion, 2010 [5 CDS]

 

Beethoven Harnoncourt: Symphonies nos. 1-9

Orquestra de Câmara da Europa

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Teldec, 2005 [5 CDs]

 

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Beethoven: Piano Concertos 1 & 4

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Martin Helmchen piano

Alpha, 2020

 

Beethoven & Mendelssohn: Violin Concertos

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Carlo Maria Giulini regente

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Warner Classics, 2010

 

Berg & Beethoven: Violin Concertos

Orchestra Mozart

Claudio Abbado regente

Isabelle Faust violino

Harmonia Mundi, 2012

 

Beethoven: Messe in C, Ah! Perfido, Meeresstille und glückliche Fahrt

Orchestre Révolutionnaire et Romantique

The Monteverdi Choir

John Eliot Gardiner regente

Archiv Produktion, 2002

 

Beethoven: Mass in C

Orquestra Sinfônica de Londres

Coro da Orquestra Sinfônica de Londres

Colin Davis regente

LSO Live, 2008