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ENSAIOS
Contar histórias pela linguagem musical
Autor:Entrevista de Gabriela Montero a Júlia Tygel
18/mai/2021

A pianista venezuelana Gabriela Montero, Artista em Residência da Temporada 2020-2021, explica como os programas que tocará com a Osesp se relacionam com sua própria trajetória.

 

 

Em 2021 você tocará, principalmente, obras de compositores russos com a Osesp: Shostakovich, Rachmaninov, Tchaikovsky e Prokofiev. Qual é sua relação com a música desses compositores?

Sempre me senti próxima à escola russa e aos compositores russos. Em um nível emocional, acho sua música muito honesta e direta. Fico muito tocada e identificada com o que os motivou a fazer música, por meio de metáforas e histórias. No programa do recital, com obras de Prokofiev, Rachmaninov, Stravinsky e a improvisação para o filme O Imigrante, de Charles Chaplin, a ideia foi abordar a história dos imigrantes e da imigração. Eu sou imigrante e tenho vivido como tal durante a maior parte de minha vida, seja morando nos Estados Unidos, no Canadá ou na Europa. Os compositores desse programa foram todos imigrantes: vieram da Rússia para o oeste, nos Estados Unidos. Quis tocar nesse tema que é tão relevante hoje: a imigração e a mudança mundial provocada pelos fluxos de pessoas de diferentes nacionalidades. Também quis lançar luz às histórias de compositores eruditos que foram forçados a imigrar por situações políticas. Neste momento da minha vida, acho que tenho algo em comum com os antigos compositores russos, pois nos tornamos, eu e eles, vítimas do que ocorria em nossos países em nosso tempo.

 

No filme de Chaplin, eu reajo à projeção em tempo real, absolutamente sem planejamento: não sei nem mesmo a tonalidade na qual vou improvisar. Isso é maravilhoso, pois trata-se de composição pura, criada em reação à grande obra de um gênio como Charles Chaplin. Já fiz isso com outros filmes silenciosos — e adoro: Nosferatu, Faust [F. W. Murnau, 1922 e 1926, respectivamente] e O Encouraçado Potemkin [Eisenstein, 1926]. O filme de Chaplin, em especial, adereça diretamente a questão dos imigrantes, com desafios e histórias com as quais qualquer pessoa que já chegou a um novo país pode se identificar.

 

E os concertos?

Serguei Prokofiev (à esquerda) e Dmitri Shostakovich, na década de 1940

O Concerto nº 1 de Shostakovich é uma obra-prima. Adoro tocá-lo pois, nele, posso expressar meu humor sarcástico — e ele também é muito físico. Com Shostakovich pode-se criar, através dos sons, a atmosfera da paranoia, do medo, da perseguição, da opressão e da ansiedade que o compositor vivenciou. Como intérprete, posso trazer essas emoções aos extremos com minhas mãos, evidenciando o humor perturbador e doentio, que se expressa, contudo, de forma sutil. Nessa peça, quero provocar: não quero ser a “boa pianista de concerto” e, sim, um animal.

 

O Concerto nº 2 de Rachmaninov tem uma linguagem completamente diferente. Toco esse concerto desde os 12 anos, é uma peça que adoro e que, a essa altura, conheço muito bem. Trata-se de uma grande afirmação romântica. Foi a primeira obra que o compositor escreveu ao sair de uma depressão, após anos de terapia — então ela também é, de certa forma, uma declaração de sobrevivência e vida. Acredito que ambos os concertos têm isso em comum — mas são tão diferentes! E estou muito feliz por retornar à Osesp para tocá-los.

 

O Concerto nº 1 de Tchaikovsky também é uma peça que toco desde aproximadamente os 11 anos. Aos 12, venci com ele um concurso nacional importante nos Estados Unidos [foram dois: o Concurso Nacional Baldwin e o Concurso da Associação Norte-Americana de Bolsas para Música — AMSA]. Foi meu primeiro “grande concerto”, ainda criança, e me introduziu ao repertório russo. Percebi que, embora seja uma obra que requer muito virtuosismo, possui grande lirismo e sensibilidade nas melodias, como é frequente em Tchaikovsky. Não gosto de tocá-lo como uma peça de concurso: não se trata de quem toca as oitavas mais rápidas ou tem mais volume. Para mim, ele é sobre o antigo romantismo russo, com gestos grandiosos, de uma época grandiosa, fazendo paralelo aos grandes escritores e dramaturgos daquele país. É um amplo momento romântico — mas também tem muita dor. Há muito sofrimento na música desses compositores: não há nada banal, pois tudo é fruto da experiência.

 

Sua expressão musical combina performance, improvisação e composição – algo muito raro para artistas clássicos contemporâneos. Para você, como essas atividades se relacionam?

Para mim, improvisação e composição são coisas muito próximas. A improvisação ocorre totalmente em tempo real — vem “do nada”. Trata-se de um processo muito puro, pois não há tempo para pensar. É como abrir uma torneira e deixar a água correr: uma maneira totalmente fluida e natural de falar pela música. É muito diferente improvisar com temas do público ou de forma livre: no primeiro caso, fico limitada a usar um tema específico, o que é divertido pois as pessoas podem seguir a melodia ao longo da improvisação, o que adoram. Mas, quando improviso sem temas pré-definidos, posso realmente criar histórias, livre de qualquer elemento dado: é algo inteiramente meu.

 

Quando componho, começo improvisando e depois vou trabalhando sobre o que criei. Agora estou compondo meus prelúdios para piano. O processo é: sento e improviso alguma coisa, que já vem com forma, melodia, tudo  simplesmente, vem — e aí, como tenho tempo, posso transformar isso em algo muito mais permanente. Essa é a diferença: improvisação não é permanente; composição, sim. E o benefício de compor é poder decidir o que será permanente.

 

Creio que, por minha relação com a música passar pela improvisação e pela ideia de contar histórias, meu objetivo, ao tocar obras do repertório, tem sido sempre falar por meio dos outros compositores da mesma forma como eu falo por intermédio da minha própria música — respeitando o que eles queriam, claro.

 

Desde criança, sempre improvisei: achava que era normal, que todo mundo improvisava — ninguém nunca me disse o contrário... Nunca estudei improvisação, harmonia ou teoria: música é como uma linguagem que sempre fez sentido para mim.

 

Em 2020, o tenor Luis Magallanes foi aceito na Ópera de Zurique. Você poderia nos contar essa história?

É uma linda história, com muitos capítulos, que talvez ainda se torne um filme. Resumindo: em 2018, Luis, um venezuelano de uma região muito pobre chamada Zaraza, me escreveu pelo Facebook pedindo ajuda porque era tenor e tudo o que queria fazer era cantar, mas não tinha oportunidade. Por causa da terrível crise na Venezuela, muitas pessoas de lá me escrevem — não consigo responder a todos, mas o faço quando posso. Respondi a ele e tivemos uma comunicação intermitente por cerca de três anos — ficou claro para mim que esse jovem pobre, que morava “no meio do nada” na Venezuela, estava realmente desesperado para sair e cantar. Mas eu não conhecia sua voz para saber se ele teria chances reais de seguir carreira. Então meu marido [Sam McElroy], que foi cantor de ópera e barítono, sugeriu que eu pedisse um vídeo — mas eu não sabia como isso seria difícil para ele. Luis não conhecia ninguém que tivesse um smartphone em Zaraza para filmá-lo, então precisou viajar 8 horas de ônibus até Caracas, gastando o equivalente à sua alimentação por duas semanas, para que um amigo fizesse o registro e enviasse o vídeo para mim. Quando finalmente o ouvimos, Sam disse: “esse menino é incrível, temos que tirá-lo de lá”.

 

Começamos então uma verdadeira corrida contra o tempo, pois havia uma prova que ele queria prestar — e essa era a oportunidade perfeita, com o motivo perfeito para as questões burocráticas. Começamos uma campanha de financiamento coletivo para a viagem e o recebemos em nossa casa. Ele veio em maio de 2018 — esse jovem que nunca havíamos visto e que estava vindo morar conosco. Quando chegou, estava muito magro e cansado: era claro que passara por uma experiência traumática. Foi quase um milagre trazê-lo da Venezuela. Então, muitas coisas aconteceram... E o enviamos para a Academia Real de Música Irlandesa, em Dublin, que foi muito generosa e lhe concedeu uma bolsa de estudos por dois anos. Um amigo ofereceu seu apartamento, pelo mesmo período, e ele pôde morar de graça também. Todos se apaixonaram por Luis — e ele começou a fazer muitos progressos musicalmente.

 

Muitas outras coisas aconteceram e, finalmente, o Estúdio de Ópera de Zurique, que é um dos melhores programas de ópera para jovens cantores, em uma das melhores casas de ópera do mundo, realizou suas provas de seleção. Mil cantores se inscreveram e Luis foi um dos seis que conseguiram uma vaga.

 

Recentemente, no Natal, ele esteve aqui em casa porque sua namorada, Dayana, mora conosco — a trouxemos da Venezuela em 2019: nós os “adotamos”! Luis é incrível, muito talentoso, e alguém que desafiou todos os prognósticos que ouviu a seu respeito: ninguém acreditava nele no início. É um sentimento de muita satisfação ajudar alguém a seguir seu sonho, envolvendo também amigos, fãs e toda a comunidade. Ele é maravilhoso.

 

Quais são seus projetos após esse período de pandemia?

Não sei, nem gosto de falar sobre isso porque não sabemos mais o que vai acontecer. Hoje eu deveria tocar no Carnegie Hall, em breve teria uma turnê com o Scottish Ensemble, voltaria ao Festival de Piano Ruhr [na Alemanha], teria tocado na Philarmonie, em Paris [com a Sinfônica da Cidade de Birmingham], faria uma residência artística no Festival Rheingau [também na Alemanha]... Foi tanto o que perdi no ano passado! O futuro não sabemos: no momento estou compondo. Minha próxima viagem, provavelmente, será ao Brasil. Estou apenas tentando ficar saudável e segura... Acho que precisamos ter gratidão por estarmos salvos: tantas pessoas sofreram tanto, perderam familiares... Estamos aqui, estamos bem — o resto será resolvido, de alguma forma.

 

Entrevista, edição e tradução de Júlia Tygel