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ENSAIOS
Ó
Autor:Felipe Lara
14/mar/2019

Inspirada no premiado livro de Nuno Ramos, "Ó" é uma peça para cantores/ narradores, coros, orquestra e meios eletrônicos composta por Felipe Lara, jovem compositor brasileiro cujos trabalhos já foram considerados “brilhantemente realizados, tecnicamente formidáveis” pelo "New York Times".

 

Encomenda da Osesp, minha obra Ó — para oito narradores/cantores, dois coros, orquestra de câmara (duas flautas, dois clarinetes, dois clarones, trompa, trompete, trombone, duas guitarras elétricas, harpa, piano, três percussionistas e cordas) e eletrônica — foi escrita entre 2010 e 2014, e dura cerca de 30 minutos. Ela é baseada no riquíssimo livro homônimo do artista Nuno Ramos (Iluminuras, 2008), mas também em aspectos únicos de seu brilhante trabalho como artista plástico.


Talvez o aspecto central do meu Ó seja o desenvolvimento de um trabalho, assim como o do Nuno, inclassificável. O Ó de Nuno não é romance, nem poesia, nem ensaio, mas tudo isso, de certa forma. O meu não é uma peça coral, sinfônica, eletroacústica, concreta nem camerística, mas uma obra que dialoga, desafia e provoca enquanto habita todos esses gêneros. Indo além, eu convido técnicas e estilos conceitualmente contraditórios, não para promover colisões ou embates estilísticos, mas para ampliar a gama de cores e o leque expressivo imediatamente disponíveis na composição. Procedimentos espectrais, tonais, atonais, modais, colagens e concretos convivem aqui em pura harmonia. Assim, o meu Ó tenta refletir sobre a própria natureza da música como linguagem expressiva, suas limitações e virtudes.


Outra perspectiva importante é o desejo de, na medida do possível, deixar o belo texto do Nuno ser ou permanecer como é, sem grandes interpretações na parte musical (o que é praticamente impossível num projeto como esse). Eu proponho uma leitura acústica mais ou menos objetiva, que procura trazer à tona o universo sonoro já presente no texto. A orquestra e o coro sugerem representações simultâneas ao conteúdo do texto declamado pelos narradores; por exemplo: cada vez que a palavra “ó” é pronunciada, os coros cantam um acorde que representa uma tradução acústica da minha própria voz cantando um “ó”. Isso é possível após a análise espectral de uma gravação da minha própria voz. Técnicas similares trazem à tona interpretações — ou traduções — de sons reais de hienas e leões, presentes no texto do Nuno. Assim é a natureza essencial da tradução: a cada movimento de aproximação do texto original eu, simultânea e necessariamente, me distancio. Nas próprias palavras do Nuno: “Estamos afundados em nossa carne, com mínimas janelas de conexão. Toda linguagem, toda ciência, toda poesia quer aumentar a transparência desse vidro frágil, mas acaba por aumentar sua espessura — em vez de fazer durar a epifania, substitui-se a ela, criando uma nova camada de isolamento”.


O texto central utilizado no meu trabalho é o primeiro Ó do livro do Nuno (primeiro de vários poemas que servem como pilares no livro, primeiro Ó, segundo Ó, terceiro Ó etc.). Outras partes do livro, inclusive outros “ós”, aparecem também na composição, mas de forma secundária. Inclusive, a forma do meu Ó segue as proporções do primeiro Ó do Nuno (abaixo); cada seção da composição é proporcional ao tamanho de cada estrofe.

 

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Ó

 

Ao carregar no estômago frutos e pedras (como o lobo da história) e caminhar sobre as cinzas dos pés feitos de cinza, as cinzas das solas, as cinzas do asfalto, as cinzas das folhas, ao provar do pó cinza pousado em tudo


então alguma coisa como canto sai de alguma coisa como boca, alguma coisa como um á, um ó, um ó enorme, que toma primeiro os ouvidos e depois se estende pelas costas, a penugem do ventre, feito um escombro bonito, um naufrágio no seco, um punhado de arroz atirado para o alto, é em nossa voz o chamado longínquo de um sino, canto e me espanto com isso, demoro a má notícia, esqueço o medo imerecido, esqueço que sou triste e grito e bato os dois címbalos como se minhas amídalas abrissem caminho ao inimigo em meu tímpano, cachimbo coletivo que traga e queima o contorno do morro, a sombra da nuvem, a linha da espuma, o samba nos juncos


mais alto que o som das notícias rasgando as revistas, a pancada de chuva, um único ó que seja mas seja contínuo, não um mantra mas um zumbido de vespa, um zangão na avenida, nas cinzas do último dia, atrás do vidro natural que me separa de tudo, da lâmina de luz, como um dia (como um dia) onde o corpo bate e zumbe, zumbe um ó, uma lâmina metálica, constante, um hino ríspido, zurro, o que será isto, no meio da avenida


feito microfonia, um ó que fosse crescendo também nos bichos, nas colmeias, no pelo dos ursos, na lã das mariposas e das taturanas, no chiado do leão sem dentes que segue de longe a própria matilha sem ouvir o ó crescente das hienas que comem, comem neste momento o seu próprio cadáver, um ó aos ratos, à astúcia entocada, ao espinho na pata, um ó em dó, em si, de lata, de lata, panelas de querosene incendiadas, um ó pelo menino assassinado por outro menino, um ó pelo seu assassino, um ó de todos os meninos, sem barba, sem pelo e sem castigo então eu me apresentaria ao mar, ao velho lobo, ó maior e grave e arenoso, eu me apresentaria à água inteira que me lambe agora os pés (meus pés, feitos de cinza, se apresentariam), abriria meus braços sem nadar, não eu, boiar talvez, e deixaria o gordo tronco que tem minhas digitais e minha idade com seus parasitas pelos, calos, suas meias-palavras e seus meios-termos, seu parasita amor perdido lá atrás, afastando-me da praia com a qual me acostumei, me separaria de suas luzes, de suas vulvas talvez, pretas, roxas, cinzentas, fitando o céu sombrio, a linha das montanhas verdes, flutuando então na minha banha, incendiando a pira da fuligem da memória (quem lembra, teme), imóvel na onda alta onde um cargueiro passa perto, vulto negro enorme, ó da morte e do esquecimento, também aí há um ó.

 

Trecho extraído do livro Ó, de Nuno Ramos
(São Paulo: Iluminuras, 2008. pp. 59-61). A Revista Osesp agradece à editora e ao autor pela generosa permissão para reproduzir este excerto.

 

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A composição apresenta também sons pré-gravados, incluindo registros produzidos durante um projeto interdisciplinar lindo do qual tive o prazer de participar: Nos sons da APA São Francisco Xavier. Dirigi uma improvisação na Serra da Mantiqueira, onde quase quarenta crianças de escola pública coletaram objetos referentes às distintas zonas de proteção ambiental da APA (Área de Proteção Ambiental). Esses sons representam a vida, a fragilidade da natureza, a juventude (e como ela passa rápido); esses sons colidem com o antigo, uma colagem que inclui uma obra de Josquin des Prez (c. 1450-1521) — Déploration Sur la Mort de Johannes Ockeghem —, em que um compositor faz tributo ao mestre que já não está (a morte é obviamente um tema central no livro do Nuno).


Meu Ó é dedicado ao Nuno Ramos pela inspiração, ao Arthur Nestrovski pelo apoio e confiança, e é também uma homenagem ao grande compositor italiano Luciano Berio (1925-2003). Os ouvintes que conhecem a Sinfonia do mestre modernista reconhecerão imediatamente paralelos na instrumentação e no caráter pluralista da peça, que também lida com a morte (o segundo movimento da Sinfonia de Berio é um memorial a Martin Luther King) e com a música de mestres do passado (o terceiro movimento faz uma colagem com a Sinfonia nº 2 de Mahler). A Sinfonia de Berio é um verdadeiro Ó.


FELIPE LARA
Compositor paulista nascido em 1979 e radicado nos Estados Unidos desde 1997. Professor de composição no Instituto Peabody da Johns Hopkins University (Baltimore), formou-se pelo Berklee College of Music (Boston), e depois na Tufts University (Medford), Columbia University (Nova York) e New York University. Possui 46 obras em catálogo, apresentadas em mais de cem concertos em prestigiados palcos da Europa e dos Estados Unidos. Em 2017 foi Professor Visitante no Departamento de Música de Harvard, onde recebeu o Prêmio Harvard de Excelência no Ensino.

 

Excertos de obras de Felipe Lara estão disponíveis para audição em seu site.

 

Foto: Felipe Lara. Crédito: Rolex Hugo Glendinning