14/mar/2019
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“Todas as investidas artísticas são aproximadas; não existe obra de arte que não possa ser melhorada” — as palavras, quase premonitórias, foram escritas por Robert Schumann (1810-1856) em um artigo publicado no jornal Der Komet (O Cometa), de Leipzig, em 7 de dezembro 1833, época em que ele iniciava sua atuação como crítico musical. Meses depois, em colaboração com outros artistas, Schumann lançaria o primeiro número da Neue Zeitschrift für Musik (Nova Revista de Música, em tradução livre), que ele dirigiria por uma década.
Embora a crítica musical se materialize com mais frequência no suporte das palavras, ela pode se dar de forma muito peculiar: musicalmente, por meio da adaptação de uma obra. Quando um músico arranja, reorquestra ou transpõe para outra instrumentação uma obra preexistente, ele tem a rara oportunidade de fazer com que os outros ouçam sua forma de ouvir aquele original: os elementos que realça, atenua, omite, acrescenta ou modifi ca revelam, como nenhum texto poderia expressar, suas opiniões e impressões sobre a obra adaptada. Trata-se, nas palavras de Peter Szendy, de “uma crítica da música na música”.1
Schumann manifestou-se sobre o tema tanto musicalmente, “compondo” os Seis Estudos de Concerto sobre os Caprichos de Paganini, Op.10, como em palavras. Para ele, mais que retratar cada feição do original, a adaptação deveria ser fiel à sua ideia — essência intangível e inatingível da obra —, materializando-a de outra maneira. As versões, assim, agregariam forças ao original na impossível tarefa de exprimir o que seria seu âmago transcendental.
É nesse sentido que as reorquestrações de Mahler (1860-1911) para as sinfonias de Schumann somam-se às originais. Mahler tinha essas obras em alta estima, e o surpreendiam as duras críticas proferidas por Wagner sobre elas. A ideia de que Schumann seria um mau orquestrador e não dominaria as formas sinfônicas foi reiterada por muitos críticos a partir da geração seguinte à do compositor, reverberando ainda nos dias de hoje. Sua orquestração foi considerada demasiado densa, o que obscureceria as linhas melódicas e não exploraria as qualidades tímbricas de cada instrumento. Por isso, vários regentes modificaram a orquestração original,2 sendo a versão de Mahler tanto a mais audaciosa em suas alterações como a única que se consagrou. Vale lembrar que transformar obras alheias foi uma prática recorrente na maior parte da história da música ocidental: apenas ao longo do século XIX, paulatinamente, o conceito de obra original se delineou, cristalizando-se no século XX.
Schumann dedicou a maior parcela da sua produção ao piano e às canções, especialmente os ciclos de peças curtas, e só conviveu com o meio orquestral na maturidade, quando se tornou diretor da orquestra e do coro municipais de Düsseldorf — e sua atuação desagradou a músicos e amadores (contribuiu para isso, sem dúvida, sua personalidade introspectiva e retraída). No entanto, ele gostava de reger e acreditava ser importante, no ofício de compositor, escrever para diversas formações e gêneros, considerando a produção sinfônica fundamental na consagração dessa carreira. Assim, mesmo face à sombra das ameaçadoramente sublimes nove sinfonias de Beethoven, que Schumann venerava e que intimidariam Brahms e Bruckner a aventurarem-se no gênero até a maturidade, ele fez sua primeira incursão orquestral ainda na casa dos 20 anos. Contudo, a Sinfonia Wickau, fruto desses esforços, permaneceu inacabada.3 Schumann voltaria a escrever para orquestra somente após seu casamento, em 1840, com a jovem pianista virtuose e compositora Clara Wieck, que seria sua parceira profissional e fortaleza emocional.
A Primeira Sinfonia — Primavera, cujo programa alude à chegada da estação no coração, foi composta em prodigiosos quatro dias em janeiro de 1841, sendo orquestrada em menos de um mês. A estreia deu-se já no fim de março, pela Orquestra Gewandhaus de Leipzig sob a batuta de Mendelssohn (1809-1847). Em outubro, Schumann já havia finalizado outra sinfonia, que seria estreada em dezembro pela mesma orquestra. A recepção mais fria dessa obra, talvez por sua maior complexidade, levou o compositor a revisá-la em 1851 e publicá-la somente em 1853 como sua Quarta Sinfonia. Nessa revisão, Schumann alterou não apenas a orquestração, que se tornou mais densa, como também trechos do conteúdo musical. O objetivo era clarificar a coesão temática, evidenciando a estruturação da sinfonia em uma grande forma que une todos os movimentos. O resultado, contudo, não agradou a todos: na década de 1880, contra os desejos da viúva Clara Schumann, Brahms promoveu a publicação da versão de 1841.
A Segunda Sinfonia, composta entre 1845 e 1846 e estreada novamente pela Orquestra Gewandhaus de Leipzig no ano seguinte, traduz para a música o triunfo (temporário) de Schumann na luta contra uma severa depressão. Ele atribuiu sua recuperação à retomada dos estudos de contraponto na obra de J. S. Bach — homenageado no terceiro movimento com o uso do motivo BACH (formado pelas notas correspondentes em alemão) — e ao apoio de Clara — aludida na tonalidade de Dó maior (“C”) e na citação do tema An die Ferne Geliebte (À Distante Amada), de Beethoven, no último movimento. Em fevereiro de 1851, Schumann regeu a estreia de sua Terceira Sinfonia — Renana, composta meses antes, à frente da orquestra de Düsseldorf (cidade à beira do rio Reno), da qual tornara-se diretor. Nessa obra, o caráter popular das melodias une-se à temática suntuosa do último movimento, mais contrapontístico, inspirado em uma cerimônia na Catedral de Colônia.
À época de Schumann, suas sinfonias foram aclamadas pelo público e pela crítica, e estudos recentes têm não apenas encontrado usos inovadores do compositor em relação às formas sinfônicas como relacionado muitos dos “defeitos” de sua orquestração à evolução histórica da própria orquestra. Ao longo do século XIX, o tamanho das orquestras aumentou significativamente, adequando-se às sonoridades grandiosas requeridas por compositores do Romantismo tardio como Wagner, Richard Strauss, Bruckner e o próprio Mahler. À época de Schumann, a Orquestra Gewandhaus de Leipzig possuía mais ou menos a metade do tamanho das orquestras atuais, com uma proporção menor de cordas em relação aos instrumentos de sopro.4 Performances historicamente informadas, ou seja, que procuram revisitar a sonoridade (e o tamanho) das orquestras da época, revelam linhas melódicas definidas com maior clareza em texturas mais leves. Também é possível que dobras instrumentais (de sopros e cordas, por exemplo) tenham sido intencionalmente colocadas para assegurar a execução de linhas melódicas importantes, mesmo no caso de falha dos músicos ou do maestro, ou para equilibrar desajustes de volume específicos (há relatos sobre o som tíbio dos violinos da Orquestra Gewandhaus de Leipzig, por exemplo).
Em suas reorquestrações, Mahler procurou transpor as ideias originais para a sonoridade e as possibilidades tímbricas das grandes orquestras de seu tempo — que ele dominava com maestria, sendo um compositor essencialmente sinfônico e atuando como regente. Assim como fez com obras de compositores como J. S. Bach, Schubert e Beethoven, ele preparou as reorquestrações das sinfonias de Schumann para concertos sob sua batuta: como maestro principal da Filarmônica de Viena, regeu suas versões da Primeira e da Quarta sinfonias, respectivamente, em 1899 e 1900 (nesse concerto, apresentou também sua polêmica reorquestração da Nona Sinfonia de Beethoven). Como regente da Filarmônica de Nova York, estreou suas versões da Segunda e Terceira sinfonias em 1910 e 1911, respectivamente. Suas reorquestrações foram bem aceitas pelo público e pela crítica, talvez por não terem sido percebidas, inicialmente, como adaptações das obras originais.
As intervenções de Mahler buscam realçar o conteúdo musical original, evidenciando as linhas melódicas principais por meio da supressão de instrumentos nas texturas de acompanhamento, do reequilíbrio de volumes entre as vozes e, muitas vezes, da transposição de trechos para registros mais agudos dos instrumentos. Além disso, ele altera e inclui abundantes e detalhadas marcações de dinâmica e articulação, para delinear mais claramente as frases melódicas. Mahler também acrescenta valor aos timbres individuais dos instrumentos e aos contrastes sonoros em detrimento das texturas densas, como em suas próprias sinfonias, eliminando muitas das dobras instrumentais presentes no original.
As partes mais alteradas foram as dos metais (mais explorados melodicamente) e dos tímpanos (com padrões que requerem mais trocas de afi nação) — instrumentos que sofreram melhorias técnicas ao longo do século XIX, oferecendo recursos indisponíveis à época de Schumann.5 Um exemplo célebre ocorre na abertura da Primeira Sinfonia, tocada pelos metais, que deveria soar como “se viesse do alto, parecendo um chamado para despertar”,6 segundo Schumann. As limitações técnicas dos instrumentos não valvulados em uso na época permitiam que a passagem fosse tocada apenas pelas trompas, e com som abafado. Mendelssohn propôs transpor o trecho uma terça acima, e a mudança foi incorporada à obra. Em sua reorquestração, Mahler restaurou as notas originais, uma vez que sua sonoridade não apresentava problemas para os modernos instrumentos valvulados (a inovação técnica foi incorporada à orquestra durante a vida de Schumann, mas ele não chegou a alterar a obra).
Com relação à Quarta Sinfonia, Mahler recupera, em muitos aspectos, características da versão original de 1841. Embora não se possa comprovar que ele tenha consultado essa partitura, trechos inteiros dessa versão reaparecem em sua adaptação, e a textura menos densa remete à sua sonoridade.
As reorquestrações de Mahler para as sinfonias de Schumann demonstram seu apreço e respeito por essas obras: suas intervenções procuram evidenciar as ideias das obras originais, readequando-as à sonoridade e aos recursos das grandes orquestras do Romantismo tardio. Mais que intentar imprimir uma estética mahleriana em Schumann, Mahler coloca suas habilidades de orquestrador de maneira generosa a serviço de seu antecessor. Inevitavelmente, contudo, ele nos revela assim as peculiaridades da sua escuta sobre essas obras. Suas versões são melhorias das sinfonias originais no sentido de que com elas coexistem, revelando-lhes aspectos que, de outra forma, talvez jamais pudéssemos perceber. Em suas reorquestrações, afinal, Mahler parece expressar, musicalmente, as palavras que lhe são atribuídas: “A tradição não é o culto das cinzas, mas a preservação do fogo”.
1 SZENDY, Peter. Listen: a history of our years. Nova York: Fordham University. Press, 2008, p. 65.
2 Dentre eles estão Felix Weingartner (1863-1942), Carl Schuricht (1880-1967), Bruno Walter (1876-1962), Hamilton Harty (1879-1941), Frederick Stock (1872-1942) e Benjamin Britten (1913-1976).
3 À época, Schumann atravessava a primeira das avassaladoras crises psicológicas que lhe assolariam por toda a vida, intensificada por uma lesão na mão que o impediria de ser o pianista virtuoso que ele almejava se tornar. Ele voltou seus esforços à carreira de compositor, iniciando a Sinfonia Wickau. O primeiro movimento foi estreado isoladamente na cidade que lhe deu o nome, e a má recepção da obra desestimulou Schumann a finalizá-la.
4 A Orquestra Gewandhaus de Leipzig, para a qual Schumann escreveu a Primeira, a Segunda e a Quarta sinfonias, tinha cerca de 49 músicos. (FRANKE, Veronica Mary. Mahler’s Reorchestration of Schumann’s ‘Spring Symphony’, Op.38: Background, Analysis, Intentions . Acta Musicologica, v. 78, n. 1, pp. 75-109, 2006). No final do século xix, as orquestras passaram a ter cerca de cem músicos (muitas obras dessa época requerem ainda mais músicos, o que passou a ser menos frequente nos repertórios modernos).
5 Em relação aos metais, a inovação foi a invenção do sistema de válvulas, que permite que o tamanho do tubo por onde passa o ar seja alterado rapidamente, conforme a necessidade (cada válvula abre a passagem de ar para um segmento adicional de tubo, aumentando progressivamente seu tamanho total) — instrumentos naturais (não valvulados) dispõem de apenas um tubo de tamanho fixo. Isso aumenta as possibilidades e a qualidade de emissão das notas, facilitando passagens melódicas e ampliando o escopo sonoro do instrumento. Em relação aos tímpanos, a melhoria foi no sistema de pedais de afinação, facilitando a troca de afinação de cada tímpano e aumentando, assim, a disponibilidade de notas que o instrumento pode tocar em uma mesma música e as possibilidades de suas combinações.
6 JENSEN, Eric Frederick. Schumann. Oxford: Oxford University. Press, 2012, p. 195.
JÚLIA TYGEL
Doutora em musicologia (USP), Pianista, é Assessora Artística da Osesp.
SUGESTÕES DE LEITURA
Eric Frederick Jensen. Schumann. Oxford University Press, 2012
Charles Rosen. A Geração Romântica. Edusp, 2000.
GRAVAÇÕES RECOMENDADA
Schumann: The Complete Symphonies — Mahler Edition
Orquestra Gewandhaus
Riccardo Chailly, regente
Decca, 2008
[Sinfonias de Schumann reorquestradas por Mahler]
Schumann: The Symphonies
Filarmônica de Viena
Leonard Bernstein, regente
Deutsche Grammophon, 1996 / reed. 1997
Schumann: The 4 Symphonies, Manfred Overture
Orquestra Sinfônica da Rádio da Baviera
Rafael Kubelik, regente
CBS Masterworks, 1979 / reed. 1989
Schumann: Sinfonias nᵒˢ 1-3 / 2-4
Osesp
John Neschling, regente
CDs Biscoito Fino, 2008 (vol.1) e 2009 (vol. 2) |