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ENSAIOS
Dialética da Sagração e Paradoxos da Primavera
Autor:Jorge De Almeida
20/mar/2018

Cem anos atrás, a ruidosa estreia de A Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky [1913], colocou em pauta um novo arranjo na dialética entre civilização e barbárie. Em plena Belle Époque, a temporada da “mais ousada produção dos Ballets Russes” chocou e seduziu o cultivado público de Paris e de Londres.


O escritor inglês Aldous Huxley, com irônica indignação, argumentou que “pessoas civilizadas podem gostar da barbárie aqui e ali, nos finais de semana. Mas não podem suportar isso todos os dias. Homens civilizados devem apreciar música civilizada”; enquanto o compositor francês Claude Debussy, atento às contradições de sua época, considerou a obra “extraordinariamente selvagem... Uma música primitiva com todos os recursos modernos”.


O paradoxo estava na ordem do dia. A mesma civilização que exaltava os ideais de racionalidade e progresso, justificando assim a violenta colonização de boa parte do mundo, buscava na espontaneidade do “selvagem e primitivo” um contraponto a seu crescente mal-estar.


A Sagração da Primavera, um ritual neolítico apresentado como obra de vanguarda, adquire um sentido mais amplo quando, para além do escândalo, é ouvida como um eco da crise histórica retratada pelas ambiguidades do modernismo europeu. Afinal, poucos anos antes, Picasso encontrara na arte africana a inspiração para o desenvolvimento do cubismo; Matisse exaltara a dança primitiva como resposta ao individualismo burguês; Gauguin pintara a exótica Polinésia com as cores de um desejo sem culpa; e Derain afirmava que “o grande perigo para a arte é o excesso de cultura”.


Reação e progresso, ruptura e continuidade, a peça se insere no contexto das mesmas contradições que (des)norteavam a melhor produção artística da época. O poeta Jean Cocteau, presente na tumultuada estreia, localizou bem a questão: “A Sagração é ainda uma obra do fauvismo, uma obra fauve organizada”. A dialética histórica entre civilização e barbárie não aparecia, portanto, como uma mera referência a elementos folclóricos externos, mas sim como um modelo para a renovação de procedimentos formais esgotados.


A aparente espontaneidade era o resultado de uma organização rigorosa, que buscava sistematicamente romper com os hábitos de um público acostumado à contemplação e ao entretenimento. Diante do decorativo academicismo art-nouveau e de um impressionismo cada vez mais aguado, A Sagração, como lembra Pierre Boulez, “trouxe o sangue novo dos ‘bárbaros’, uma espécie de choque elétrico que, sem maiores preparações, foi administrado a organismos anêmicos”.


O novo alento, entretanto, não vinha de exóticas colônias distantes, mas do periférico e atrasado Império Russo, a meio caminho entre a Europa e o Oriente. Como lembra o musicólogo Richard Taruskin, a novidade de A Sagração deve muito a um antigo debate da intelligentsia russa, que oscilava, desde o Romantismo, entre a exaltação urbana dos valores progressistas da “cultura europeia” e a idealização quase religiosa da simplicidade espontânea do “povo russo”. De Tolstói a Dostoiévski, de Tchaikovsky a Rimsky-Korsakov, os artistas russos se aqueceram nas fagulhas desse conflito e, questionando a “frieza” da pragmática burguesia europeia, acabaram incendiando a imaginação de toda a Europa, a ponto de Marcel Proust se referir à onipresente arte russa como uma “encantadora invasão”.


Um momento decisivo do diálogo entre a tradição russa e o modernismo europeu foi o polêmico sucesso dos Ballets Russes, companhia fundada em 1909 por Serguei Diaghilev. Atribuindo ao balé, gênero predileto da elite russa, o lugar antes preenchido pela ópera como “obra de arte total”, Diaghilev compreendia seus espetáculos como (lucrativos) episódios de uma “regeneração radical” da sociedade europeia, sob o comando de sua controversa “moderna sensibilidade”.


Além de espetáculos baseados na música de seus conterrâneos (Borodin, Rimsky-Korsakov, Prokofiev e o próprio Stravinsky), Diaghilev encomendou obras aos compositores mais avançados da França (Debussy, Ravel, Satie e Poulenc, entre outros) e confiou cenários e figurinos a nomes importantes da arte moderna (como Picasso, Matisse, Miró e Dalí).


O impacto de cada temporada dos Ballets Russes ultrapassava em muito a cena artística, pois a sensualidade, a ousadia e a novidade de suas produções logo se tornavam assunto público, mobilizando admiradores e inimigos exaltados.

 

Mas nenhuma outra obra causou tanta polêmica quanto A Sagração da Primavera. Os motivos começam, sem dúvida, com a escolha do tema: um ritual pagão de adoração à terra, que culmina no sacrifício de uma jovem virgem em homenagem ao renascer da primavera.

 

A paternidade desse enredo é objeto de muita controvérsia. Os três “colaboradores” — Stravinsky, Nijinsky e Roerich — legaram versões conflitantes, e até mesmo Diaghilev, seguindo os seus autodeclarados “pouquíssimos princípios”, pretende uma improvável participação na ideia.


Sabemos, entretanto, que um papel fundamental cabe a Nicholas Roerich, um erudito místico russo, autor dos cenários e do figurino da estreia. Pintor, poeta e arqueólogo, Roerich acreditava que “o triunfo da cultura russa viria de uma nova apreciação dos mitos e das lendas antigas” e incentivava seus conterrâneos a dar uma forma moderna aos ritos de seus ancestrais.


Stravinsky teria assumido a tarefa (ou sonhado com ela, como conta em suas memórias não muito confiáveis) de compor um enredo mítico “unificado por uma só ideia: o mistério e o jorro do poder criativo da primavera”.


As várias seções da partitura, esboçada entre 1911 e 1913, trazem títulos diferentes em russo e francês, mas basicamente descrevem os diversos momentos do ritual panteísta. A primeira parte (“O Beijo da Terra”, no original; “A Adoração da Terra”, em francês) tem início com o despertar da natureza, após o longo inverno.


Comentando essa passagem, Stravinsky evoca uma experiência de infância: “A violenta primavera russa que parecia começar no espaço de uma hora, e era como se toda a terra estivesse em convulsão”.

 

Seguem-se “Os Augúrios Primaveris”, com uma “Dança das Adolescentes”, que antecede os rituais “Do Rapto” e “Das Tribos Rivais”, entremeados por uma dança de roda. O “Cortejo dos Anciãos” prepara o ponto alto do rito, “O Beijo da Terra”, que termina com uma dança sagrada.


O sacrifício ocorre na segunda parte, quando o “Círculo Místico das Adolescentes” prepara a “Nomeação e Glorificação da Escolhida”. Os anciãos invocam o espírito dos ancestrais, e um novo ritual culmina na “Sagrada Dança Sacrificial”, na qual a virgem escolhida dança até a morte, cercada por toda a tribo.


Do ponto de vista musical, o uso de “recursos modernos” para expressar uma “música primitiva” seria a principal característica da Sagração, como bem notou Debussy (que tocou com Stravinsky a versão para dois pianos da obra, em junho de 1912).


Seguindo a inspiração do programa (a ideia de um sacrifício individual em nome do bem coletivo), as “células motívicas” que constituem os principais temas da obra não são “desenvolvidas”, como na tradição musical do século XIX, mas sim justapostas, condensadas e mesmo destroçadas, em nome do efeito geral.


Ainda que parte significativa desses “temas” derivem literalmente de canções e danças populares russas (como descobriu Taruskin), o resultado está longe de ser folclórico, pois as melodias são submetidas a um tratamento “visceral” de expansão e contração contínua, de renascimento e morte. Na calculada “organização” dos motivos (e também de acordes e tonalidades distintas, no âmbito da harmonia), a aparente anarquia da Sagração é marcada por uma rigorosa articulação do contraste, como demonstrou Pierre Boulez em uma análise minuciosa da partitura.


O resultado, mais uma vez paradoxal, é uma música orgânica que soa como mecânica, e vice-versa, rompendo com os modelos tanto do romantismo tardio germânico quanto do impressionismo francês. Em grande medida, isso decorre do uso inovador de elementos rítmicos como parâmetros de construção (e desconstrução) da forma, como fica claro na leitura dos esboços manuscritos da obra.


A relação mimética entre a primazia do ritmo e o sacrifício ancestral é evidente, mas gerou críticas tão desconcertantes quanto a própria música, como aquela publicada em Londres, um dia após a estreia inglesa: “Se o senhor Stravinsky tivesse desejado ser realmente primitivo, teria sido mais sábio abandonar a orquestra grandiosa e compor seu balé apenas para tambores”.


Na verdade, o que o civilizado Stravinsky desejou foi justamente submeter a “orquestra grandiosa” à batuta imperiosa do ritmo; não apenas do ritmo particular que configura temas e motivos, mas também do ritmo geral que brota do encadeamento, frequentemente assimétrico, entre duração, repetição, andamento e pulsação.


Do ponto de vista histórico, isso significou uma redefinição do próprio discurso orquestral, como percebeu o crítico alemão Paul Bekker: “As cordas querem cantar, ser expressivas, e é isso que Stravinsky não quer. Sua orquestra é um organismo rítmico. [...] É uma concepção visual da música. Seu modelo não é mais o cantor, mas sim o dançarino”.


Não podemos esquecer, por isso, que A Sagração foi, antes de tudo, uma obra coreográfica. A partitura manuscrita anotada conjuntamente por A Stravinsky e Nijinsky demonstra o quanto os dois trabalharam juntos na organização da sequência dos atos e na dinâmica geral do enredo.

 

 

Naquela época, Nijinsky era o grande astro da companhia dos Ballets Russes, incensado pelos jornais franceses como “le dieu de la danse” (o deus da dança). Capaz de proezas inacreditáveis, sua sensualidade e carisma impressionavam a plateia, que se dividia entre a sedução (“Nunca havia visto nada tão belo”, teria dito Proust) e o ciúme (“Um gênio perverso... um jovem selvagem... Este sujeito faz fusas com os pés, confere-as nos braços, e depois, de repente, meio paralisado, para irritado observando a música passar. É terrível!”, reclamava Debussy).


Entusiasmado com o tema de A Sagração e influenciado por Roerich, que lhe mostrou documentos antropológicos e imagens de representações tribais, Nijinsky concebeu uma dança que rompia com os padrões convencionais de beleza, leveza e elegância associados ao balé tradicional. Seus movimentos, contorcidos e angulosos — “como um quadro cubista”, diria um contemporâneo — exigiam dos dançarinos posições precisas e desconfortáveis, tornando a execução da peça um literal sacrifício, compensado pela certeza de que a obra, “nova, bela e totalmente diferente”, mudaria a história da dança.

 

Após um período conflituoso de ensaios, a estreia foi marcada para a noite de 29 de maio de 1913, no recém-inaugurado Théâtre des Champs-Élysées, considerado por vários parisienses “uma afronta arquitetônica ao bom gosto”.


Na primeira parte do longo programa, três modernas coreografias de Fokine, que já constavam do repertório da companhia: as Sílfides (Chopin), O Espectro da Rosa (Weber) e as Danças Polovtsianas (Borodin). O público, com seus fraques e suas joias, incorporava orgulhoso a imagem do “dernier cri”, a mais recente moda parisiense, que seria copiada em seguida pelas revistas do mundo inteiro.


Diante do colorido cenário de Roerich, o fagote iniciou solitário, no centro da imensa orquestra, o despertar da primavera, seguido pela trompa, pelos clarinetes e, logo depois, pelos primeiros gritos e assobios de uma bárbara confusão vinda da plateia, enquanto o maestro Pierre Monteux regia, impassível, os ritmos de Stravinsky, e os dançarinos se esforçavam para não perder o passo, seguindo com precisão as contagens gritadas, da coxia, por Nijinsky.


Entre os vários relatos, verdadeiros ou fantasiosos, sobre o que de fato ocorreu naquela noite, dois poetas merecem ser ouvidos. Acostumado à rotina dos escândalos que abalavam Paris, Jean Cocteau descreveu a revolta como parte do espetáculo: “A sala representou o papel que lhe tocava: ela se revoltou logo de início. Risos, vaias, assobios, imitações de gritos de animais, tudo isso podia muito bem ter se acalmado, se a multidão de estetas e alguns músicos, levados por um zelo excessivo, não tivessem insultado, e mesmo intimidado, o público dos camarotes. A algazarra degenerou em luta”.


Siegfried Sassoon, cujos poemas ainda nos lembram os sacrifícios da barbárie que começaria um ano depois, interpretou a posteriori a violência daquela sagração: “[...] Vamos, dancemos! Aproveitemos essa chance clamorosa de agir / criativamente, – abandonando qualquer pudor / em um antissocial aplauso rapsódico! / Linchem o maestro! Degolem a percussão! / Massacrem os sopros! Ensanguentem as cordas! / Estrangulem as flautas! ... O abril de Stravinsky chega / com a pompa impiedosa e a dor de sagradas primaveras... / Incendeiem o teatro com os fogos resinosos / de rabecas sacrificiais que crepitam e guincham!”.


Stravinsky, fiel ao radical conservadorismo de sua obra posterior, sempre atribuiu o suposto fiasco à coreografia de Nijinsky, lembrando que a estreia da Sagração como peça de concerto, um ano depois, foi aclamada pela crítica e pelo público.


Outros consideram o tumulto daquela noite uma obra-prima do próprio Diaghilev, que teria orquestrado a polêmica para obter um lucrativo “succès de scandale”, expressão típica da moderna relação entre escândalo e sucesso.


Apesar de toda a violência da música e a confusão da estreia, A Sagração teve outras tranquilas apresentações em Paris, seguidas por uma curta temporada em Londres. O único a assumir com orgulho a revolta causada por sua criação foi Nijinsky, que desprezou o mau-gosto de um público incapaz de reconhecer a beleza brutal de sua coreografia. Condenada ao esquecimento, essa “dança sagrada” só voltaria ao palco no final dos anos 1980, em uma versão reconstruída a partir de manuscritos, fotos e depoimentos.


Em um livro polêmico, Rites of Spring (2000), o historiador Modris Eksteins interpreta A Sagração como uma obra emblemática das contradições do século XX. Aproximando vanguarda artística e vanguarda militar, o historiador descreve o modo como os ideais de beleza e liberdade do Modernismo se converteram na estetização da guerra e na ideologia da técnica, a partir da liberação dos impulsos primitivos que levariam, um ano após a conturbada estreia, à catástrofe das trincheiras: “O soldado desconhecido se encontra à frente e no centro de nossa história. Ele é a vítima de Stravinsky”.

 

Com uma visão menos conservadora da dialética do Modernismo, Theodor Adorno também tece duras críticas à Sagração, uma “peça virtuosística da regressão musical”. Na “falta de compaixão” da coexistência indiferente ou sobreposição violenta das células rítmicas e temáticas, a obra mimetizaria um desejo de submissão do indivíduo ao coletivo, aproximando-se do irracionalismo vitalista da época.


Na estetização do ritual, a vítima do sacrifício não é lamentada, mas sim glorificada, e a fruição artística desse acontecimento brutal traz as marcas do sadomasoquismo: “Por meio dos choques, o individual toma imediatamente consciência de sua nulidade diante da máquina gigantesca do sistema totalizante”.


Os choques vanguardistas de A Sagração, baseados na constante ruptura de expectativas, logo se convertem na mera expectativa das rupturas, e os instintos supostamente liberados nesse círculo vicioso (como na dança de roda que cerca a virgem escolhida) voltam-se contra o próprio sujeito, em uma espécie de “catarse recalcada”. Algo disso foi pressentido na estreia, e a escandalosa revolta do público não deve ser reduzida a uma curiosa anedota. O próprio Stravinsky teria se chocado com a reação violenta, convertendo-se, depois da guerra, no principal defensor do “retorno à ordem” proposto pelo neoclassicismo artístico da década de vinte.


A Sagração da Primavera é, portanto, um manancial de contradições, choques e paradoxos: civilização e colonização, no contexto político; primitivismo com recursos modernos, na música; forma orgânica e ritmo mecânico, na composição; música de concerto e coreografia, na gênese; sensualidade e violência, no enredo; e um bárbaro sucesso de escândalo, na estreia.

 

Um século depois, A Sagração ainda pode nos chocar? Qual o sentido do sacrifício ritual que ela um dia representou diante das catástrofes do século XX? Transformada em um clássico, o interesse por suas contradições ainda sobrevive? São questões importantes, mas que certamente não mobilizarão o público de hoje com o mesmo ardor primaveril de cem anos atrás.


Que nenhuma música consiga nos empolgar dessa forma talvez seja um chocante traço de barbárie da consagrada cultura de nossa época.

 

 

Texto publicado originalmente em 1º de Maio de 2013, por ocasião do Centenário de A Sagração da Primavera.