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Saint-Saëns em 1915
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Na primavera de 1890, a imprensa parisiense se preocupava com o inexplicado desaparecimento de Camille Saint-Saëns. O compositor abandonara definitivamente sua residência na rua Monsieur-le-Prince, não fornecera nenhum endereço oficial, legara à cidade de Dieppe [no norte da França] suas coleções particulares e pusera sua biblioteca musical em depósito na Casa Érard [célebre loja de fábrica de pianos, em Paris]. Saint-Saëns confiara aos amigos [compositores] Ernest Guiraud e Gabriel Fauré a organização dos ensaios de sua nova ópera, Ascanio. A ausência do compositor na primeira apresentação parisiense de sua última obra lírica e na produção francesa de seu carro-chefe operístico, Sansão e Dalila, surpreendia a opinião pública e incitavaos repórteres a rastrearem sua pista. Em 5 de abril, num artigo [no jornal] L’Intransigeant intitulado “Deixem-no em paz!”, Henri Rochefort tomava a defesa do músico e denunciava a “caça ao homem” na qual Saint-Saëns, segundo ele, era o alvo. Apelava aos jornalistas que respeitassem sua intimidade e afirmava a necessidade de distinguir o caráter, necessariamente público, da agenda dos políticos eleitos e a dimensão privada da vida de um compositor, pouco suspeito — diferentemente do general Boulanger1 — de fomentar um golpe de Estado: “Ninguém pode temer que Saint-Saëns, uma bela manhã, marche ao Palácio do Eliseu à frente de duzentas mil semicolcheias”.
Em 14 de dezembro de 1889, partindo de Cádiz [na Espanha], Saint-Saëns alcançara as Ilhas Canárias. A ideia dessa viagem lhe ocorrera desde o mês de janeiro para se recuperar da depressão que se seguiu à morte de sua mãe, falecida em 18 de dezembro de 1888, aos 79 anos. Nesse meio-tempo, estivera em Tamaris, depois em Argel [ambas na Argélia], passara um tempo em Saint-Germain-en-Laye [na França] e partira para a Andaluzia em outubro de 1889, antes de finalmente embarcar. Longe de Paris, o compositor consolava sua tristeza no anonimato e assumira o pseudônimo de Charles Sannois. Incógnito, percorria o interior de Tenerife até ter sua verdadeira identidade inesperadamente revelada, em 13 de abril de 1890.2 O boato, agora acertado, de que um célebre artista francês escolhera o arquipélago canarino para ali consolar sua mágoa obrigou o compositor a se esvair das aflições locais da mundanidade, incitando-o a retornar à França. Decerto para prevenir um eventual escândalo e para que os vaivéns do músico não fossem mais alvo de tais especulações, o departamento de polícia [de Paris] registrou, pelo menos até 1896, as idas e vindas do músico durante suas estadias na capital, [dando] testemunho da repercussão dos deslocamentos de Saint-Saëns e do espanto geral suscitado por sua extrema mobilidade.3
Esse episódio, no mínimo épico, dá uma ideia do que foi a vida itinerante de Saint-Saëns e de alguns dos motivos que a animaram. De 1857 a 1921, ele empreendeu 179 viagens por 27 países. [...] De frágil constituição pulmonar, Saint-Saëns seguira os conselhos médicos que lhe recomendavam não se expor em excesso aos rigores do inverno norte-europeu. [...] Assim, frequentou estações termais na França e na Argélia, como Bourbon-l’Archambault e Hammam R’Igha. A migração invernal rumo ao sul, sobretudo na Argélia, configurava-se como um saudável hábito higienista, ao qual é preciso acrescentar a atração pelos horizontes longínquos, assim como um grande número de obrigações profissionais devidas à fama internacional do artista (turnês, festivais, concertos, ensaios, cerimônias públicas). A essa grande quantidade de viagens devem-se somar pelo menos as 136 que o artista realizou na França, em 62 cidades no total.4 O deslocamento correspondia, portanto, a um verdadeiro estilo de vida, a tal ponto que Saint-Saëns às vezes não dispunha mais de endereço fixo, o que explica sua assiduidade em hotéis, inclusive de Paris. [...]
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Saint-Saëns ao piano, em 1916
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Se a frequência das viagens do músico era, para o dizer o mínimo, excepcional, os progressos dos meios de transporte as facilitavam consideravelmente, reduzindo os riscos e os incômodos. O racionalismo e o cientificismo que caracterizavam Saint-Saëns se confirmavam na ideia de que a viagem representava um progresso tecnológico notável, um avanço em matéria de liberdade, bem como um instrumento a serviço da descoberta e do conhecimento. Em 1911, Saint-Saëns compôs um coro para quatro vozes masculinas, intitulado Aux Aviateurs. Com letra de Jean Bonnerot, o Opus 134 celebrava a conquista do ar pelos primeiros aviadores. [...] A valorização do progresso residia na ideia de que os novos meios de transporte eram úteis a toda a humanidade e à paz. [...]
Se considerarmos o período de 60 anos circunscritos da primeira à última viagem do compositor, poderemos observar [vários] elementos característicos da história das viagens [...]. A primeira temporada no exterior deu-se na Itália, com o padre Jean-Louis Gabriel, pároco de Saint-Merry, em 1857.5 Com essa excursão, o jovem Saint-Saëns tornava-se herdeiro de um modelo em vias de extinção, o do Grand Tour, reservado às minorias burguesas e aristocráticas. A ida à península italiana, e a Roma em particular, constituía uma viagem de iniciação exclusiva a uma elite turística ávida de antiguidades. [...] Saint-Saëns se valeu de todos os avanços que, no curso do século XIX, facilitaram grandemente a mobilidade das pessoas. Foi contemporâneo da escavação dos dois canais interoceânicos de Suez e do Panamá, que simbolizavam o triunfo da razão e da técnica frente aos desafi os impostos ao homem pela natureza. A densificação das redes ferroviárias e das vias navegáveis acelerava os deslocamentos.6 [...] Quando se dirigiu, por diversas vezes, aos Estados Unidos e à América Latina, Saint-Saëns se beneficiou do advento dos cruzeiros transatlânticos e dos serviços oferecidos pelas companhias de viagem, então em plena expansão. Por ocasião de seus múltiplos percursos, decerto teve a oportunidade de subir nos primeiros bondes elétricos e de ser passageiro de um automóvel, cujo número alcançava os cem mil, na França, por volta de 1914. Sem dúvida, deve ter sido também um dos primeiros usuários do metrô recém-construído em Paris. [...] Pôde usufruir de uma “literatura da estrada”, então em pleno desenvolvimento: guias, fascículos que informavam sobre os horários, as tarifas, os itinerários, e que traziam um auxílio prático ao viajante. [...] Em suas idas à bacia mediterrânea, Saint-Saëns se filiava de vez em quando à tradição do sábio explorador, para quem a viagem servia para enriquecer os conhecimentos e as coleções.7 [...] Em pelo menos duas ocasiões, Saint-Saëns adotou outra postura, a de um peregrino da música, ao viajar à Alemanha, a Terra Prometida dos músicos. Em 14 de abril de 1879, visitou em Berlim o túmulo de Schumann, onde recolheu uma folha de loureiro, cuidadosamente conservada. Em 1876, esteve entre os que responderam ao convite de Wagner para a inauguração do festival de Bayreuth. [...]
Durante seus vinte últimos anos de vida, [...] Saint-Saëns tomou consciência das mudanças que, a seu ver, ocidentalizavam o Oriente que se estendia da Espanha ao Egito. Lamentava a parisianização de Argel e declarava seu interesse pelo patrimônio árabe em perigo.8 A nostalgia de suas primeiras viagens o fazia recear o desaparecimento dos vestígios que identificavam o Oriente com o passado e o diferenciavam, assim, do Ocidente moderno e industrial. A angústia da uniformização se manifestava diante dos progressos da globalização em curso. Além disso, [...] o compositor acreditava em um deslocamento da civilização do leste para o oeste. Os efeitos da Primeira Guerra Mundial sobre o Velho Continente confirmariam, a partir de 1914, a ideia de uma América sucessora da Europa como epicentro da civilização mundial. Percorrer longas distâncias equivalia, portanto, a remontar no tempo. A experiência geográfica se metamorfoseava em experiência diacrônica.
Manuscrito da Sinfonia nº 3, Op. 78 — Órgão, de Saint-Saëns
A preponderância da viagem na vida do compositor contribui, em boa parte, para sua dupla identidade de cidadão e de artista.9 [...] Sua estratégia do deslocamento por terras estrangeiras serviu aos seus interesses de carreira e o ajudou a encarnar a escola francesa de música aos olhos do mundo. [...] Fervoroso admirador de Victor Hugo, o compositor se manteve fiel à máxima que o autor de Les Misérables mandou gravar no jardim de sua casa de Guernsey [na França]: “Imensidão diz o ser, eternidade diz a alma”.10 [...]
Saint-Saëns jamais esteve tão em seu lugar quanto ao se deslocar, ou foi tão francês quanto no estrangeiro. Sua consciência do mundo pelo prisma da música e por meio da viagem o ajudou a avaliar a importância dos lugares. Estes ocupam espaço também, de maneira simbólica, em muitas de suas partituras com acentos pretensamente egípcios, africanos, californianos, dinamarqueses ou russos. [...]
1 N.d.E.: Georges Boulanger (1837-91), general e político francês que ganhou notoriedade em 1889 pela ameaça de tornar-se um ditador.
2 Ver a respeito: Jean Bonnerot. C. Saint-Saëns (1835-1921): sa Vie et son Oeuvre. Paris: Durand et fils, 1923; e Jean Gallois. Camille Saint-Saëns. Sprimont: Mardaga, 2004.
3 Esse espanto diante da frequência das viagens de Saint-Saëns levou seu secretário, Jean Bonnerot, a escrever a respeito no dia seguinte à morte do compositor: “Saint-Saëns Voyageur”. Le Guide du Concert, número especial fora de série, Camille Saint-Saëns, 1922, p. 20-24
4 O recenseamento das viagens de Saint-Saëns na França e no exterior tornou-se possível graças a Jean Bonnerot, que o incluiu na biografia do compositor.
5 Saint-Saëns foi organista da igreja de Saint-Merry em Paris de 1853 a 1857. O padre Jean-Louis Gabriel fez de Saint-Saëns o titular dos órgãos da paróquia. O compositor lhe dedicou uma Missa a Quatro Vozes, Solista e Coros, Op. 4. O padre Gabriel (1796- 1866) adquiriu certa notoriedade no mundo eclesiástico sobretudo em razão de seu engajamento em favor da juventude.
6 Hector Berlioz celebrou em 1846 a era do trem com seu Chant des Chemins de Fer [Canto dos Caminhos de Ferro], cantata profana para voz, coro misto e orquestra.
7 O Castelo-Museu de Dieppe possui numerosos objetos egípcios trazidos por Saint-Saëns.
8 Como testemunham várias de suas intervenções na Academia de Belas-Artes.
9 Uma parte dos deslocamentos, sobretudo na França, se explica pela função de acadêmico ocupada por Saint-Saëns de 1881 a 1921.
10 Verso de As Contemplações (1856).
STÉPHANIE LETEURÉ
Doutor em Musicologia e professor de história e geografia no ensino médio na França. Além de Camille Saint-Saëns: le Compositeur Globe-Trotter (1857-1921), publicou o livro Camille Saint-Saëns et le Politique de 1870 à 1921 (Vrin, 2014).
Texto extraído do livro Camille Saint-Saëns, le Compositeur Globe-Trotter (1857-1921). Nanterre: Actes Sud / Palazzetto Bru Zane, 2017.
Tradução de Marcos Bagno
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