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ENSAIOS
As sonatas de Beethoven
Autor:Charles Rosen
04/mar/2020

Detalhe de teclado de órgão que pertenceu a Beethoven

 

A avó de [Marcel] Proust era uma mulher de conduta extremamente modesta e despretensiosa, e que jamais se atreveria a contradizer o critério literário de quem quer que fosse.

 

Contudo, nos assuntos cujas regras e princípios lhe foram ensinados pela mãe — como cozinhar certos pratos, tocar as sonatas de Beethoven e receber convidados com a devida cortesia —, ela estava convencida de que era correta sua ideia de perfeição e seu discernimento em relação aos demais, se eles chegavam ou não perto disso. E mais, para essas três coisas, a perfeição era quase a mesma: era uma espécie de simplicidade de meios, de sobriedade e de charme. Ela reagia horrorizada a condimentos num prato que não fossem realmente necessários, a interpretações afetadas e que abusavam dos pedais, ou a que se “recebesse” de modo que se extrapolassem os limites da naturalidade, bem como aos exageros com que alguém falava de si mesmo. Ao primeiro bocado, às primeiras notas, de uma simples carta, ela afirmava que sabia se estava lidando com uma boa cozinheira, uma musicista de verdade, uma mulher culta. “É possível que ela tenha mais técnica do que eu, mas falta-lhe gosto, tocar um andante tão simples com tamanha grandiloquência” [...] “É possível que seja uma cozinheira hábil, mas não sabe fazer bife com batatas”. Bife com batatas! O prato ideal numa competição, difícil por causa da sua simplicidade, uma espécie de Sonata Patética da cozinha...1

 

A comédia de Proust situa as sonatas para piano de Beethoven em seu lugar apropriado de grande representante da cultura ocidental entre as famílias de classe média e alta de 1850 até quase os nossos dias, tanto pela parte significativa que lhes cabe na vida civilizada quanto nos jantares das famílias e na recepção de convivas. Quem quisesse apreciar uma pintura ia a um museu; ler poesia e romances era uma coisa que se fazia, em geral, individualmente, não como atividade comunitária da família; teatro e dança só existiam fora de casa, bem como sinfonias e óperas. Para os filhos de uma classe social com certos privilégios, porém, aprender a tocar piano vinha em segundo lugar, ainda que fosse um segundo lugar razoavelmente distante, depois de aprender a ler. Especialmente no caso das mulheres jovens, saber tocar piano era indispensável para o respeito pessoal e para afirmar seu lugar na sociedade.

 

Para tocar em casa, a forma mais prestigiosa de música séria eram as sonatas para piano de Beethoven. Com exceção de O Cravo Bem Temperado, as obras de todos os outros compositores pareciam superficiais. Bach era acadêmico demais, muito erudito para que rivalizasse com o drama e a emoção da sonata de Beethoven. Mais ainda do que o quarteto de cordas, a sonata era, com raras exceções, a província do músico amador. Podemos inverter com proveito a metáfora de Proust: as sonatas para piano de Beethoven eram o bife e as batatas da música artística, a prova de que se tinha acesso em casa às maiores obras-primas musicais.

 

Elas eram também a ponte entre a música feita em casa e a música das salas de concertos, a parte principal do recital sério, o meio pelo qual o pianista profissional de concerto podia demonstrar suas pretensões à cultura musical mais elevada. Não havia nada de vulgar nas sonatas de Beethoven: elas não eram usadas, ou não deveriam ser, para deixar perplexo o ouvinte com a técnica do intérprete, e não deixavam transparecer nem um pouco aquele caráter mórbido e efeminado tão deplorável das obras dos grandes românticos, Chopin, Schubert, Mendelssohn e Schumann. Havia seriedade nelas, bem como paixão e humor. Eram a garantia de contato com o sublime e se projetavam em direção ao futuro. Embora clássicas, não abriam mão de certo caráter controverso que as acompanhou em sua aparição inicial diante do público. Em princípios do século XX, o mais famoso professor de piano de Viena, Theodor Leschetizky (que teve entre seus alunos Artur Schnabel, Ignaz Paderewski e Ossip Gabrilovich), continuava a advertir seus alunos de que não tocassem as sonatas da fase final. De todas as obras de Beethoven, somente elas e os últimos quartetos tinham a capacidade de aturdir as plateias dos concertos. Paradoxalmente, as sonatas continuavam a ser modelos para a vanguarda, ao mesmo tempo em que se tornavam modelo para a crítica conservadora. Em nossa época, elas ainda são capazes de estimular a experimentação e a individualidade, de encorajar a intransigência.

 

O papel histórico das sonatas para piano decorre essencialmente de sua dupla natureza — privada e pública. Elas não apenas se sujeitaram às mudanças radicais nas relações entre música e sociedade, como também ajudaram a dar forma a essas mudanças. Durante a vida de Beethoven, praticamente nenhuma de suas sonatas para piano foi executada publicamente em Viena. A tradição musical da cidade pode ter criado o primeiro estilo viável de música pública puramente instrumental no Ocidente, mas Viena estava atrasada na criação da instituição do concerto público — isto é, em vez de concertos de bandas ou de execuções gratuitas ao ar livre, concertos de música instrumental com venda de ingressos —, uma instituição comercial elementar para o desenvolvimento da música conforme a conhecemos hoje, e que substituiu o patrocínio da corte e da igreja na garantia da subsistência dos músicos. No começo do século XVIII, antes de Viena, Londres e Paris já contavam com um sistema bastante desenvolvido e florescente de concertos públicos. Até mesmo Nova York estava mais à frente. Assim como tendemos a encontrar um encanamento mais antiquado em cidades que investiram nisso mais cedo, enquanto países menos desenvolvidos, que só tiveram condições de ter um sistema de tubulações muito mais tarde, com frequência são exemplos do que há de mais moderno e atualizado nessa área, assim também Viena, onde o avanço dos concertos públicos estava aquém de outras capitais europeias, produziu, com a chegada de Haydn, os mais eficientes e modernos exemplos de obras criadas para a nova maneira de tornar acessível a música instrumental.

 

O que tornou possível a façanha vienense, porém, foi uma rica tradição de criação musical privada e semiprivada. A Hausmusik, ou música no lar, era generalizada, assim como os concertos privados de quartetos, sonatas e canções para pequenos grupos de doze ou vinte amigos e convidados nas casas da aristocracia e da classe média. (Esse foi o berço em que os Lieder de Schubert se desenvolveriam até chegar à maturidade). As princesas Esterházy aprenderam a tocar as sonatas de Haydn e os seus trios para piano, e o arquiduque Rodolfo, da Áustria, foi um dos alunos mais famosos de Beethoven; mas a venda de partituras para o público em geral era uma fonte importante e crescente de receita para os compositores em sua tentativa constante, de sucesso apenas limitado, de se emancipar do patrocínio e da dependência da aristocracia.

 

As sonatas para piano de Beethoven podem ter sido concebidas basicamente como obras privadas ou semiprivadas, mas o compositor era um pianista virtuose de reputação considerável. Ele seguiu o exemplo de Mozart ao introduzir no que era basicamente música privada as dificuldades e a demonstração do virtuosismo público: os quartetos para piano de Mozart, que são por vezes semelhantes a concertos para piano, são os exemplos mais magníficos disso (o editor cancelou sua comissão so bre seis quartetos para piano porque os dois primeiros eram difíceis demais para o músico amador e não foi possível vendê-los), além de várias sonatas para piano, como a Sonata em Dó Menor. A Sonata em Si Bemol Maior — K. 333 tem, de fato, um final que toma a forma de um rondó para concerto e imita a alternância de passagens tutti e solo. Beethoven mostrou ainda menos consideração pelo músico amador do que Mozart; na verdade, é célebre também sua pouca preocupação com as inquietações e o conforto do músico profissional. Suas sonatas “fáceis”, como a Sonata nº 25 em Sol Maior — Op. 79, tendem a desafiar até mesmo o intérprete mais competente. E nas primeiras publicações de suas sonatas mais requintadas ele prescreveu digitações muito específicas que dificultam a execução da música — são, porém, mais eficazes do que as digitações que muitos pianistas escolheriam hoje e as recomendadas pelos editores (é o caso da Sonata para Piano no 2 em Lá Maior, Op. 2, no 2, primeiro movimento, compassos 84 e 85 — até mesmo Czerny, seu aluno, aconselhou uma digitação mais fácil). Logo ficou evidente que sua música para piano era adequada à esfera pública. As sonatas de Beethoven formaram o primeiro corpo de obras substancialmente sérias para piano próprias para a execução em grandes salas de concerto diante de centenas de pessoas. Depois que Liszt criou o recital para piano, uma década após a morte de Beethoven, as sonatas se tornaram aos poucos a base do repertório público de qualquer pianista que tivesse pretensões à prática séria da música.

 

Contudo, a base da cultura musical ao longo do século XIX persistiu na esfera privada. Em artigos escritos em 1802 no Allgemeine Musikalilsche Zeitung, “Sobre Virtuoses em Turnês” (Über reisende Virtuosen), o crítico Johann Karl Friedrich Triest observou que um concerto público dado por um intérprete exímio servia principalmente como estímulo, uma inspiração para que os muitos amadores vencessem a preguiça e a mediocridade. Triest foi o crítico musical mais interessante e mais brilhante da época, e suas observações sobre as dificuldades do virtuose em suas viagens são contemporâneas das Sonatas de Beethoven Op. 31. Elas apontam para a importância do músico amador, de que estava constituída boa parte da plateia dos concertos públicos. Em princípios do século XIX, o concerto num salão público por um músico profissional era relativamente raro, uma manifestação pouco comum do fazer musical, que se dava em grande medida em casas particulares ou nos lares. Até mesmo o virtuose em turnê tinha, de acordo com Triest, de estar equipado com uma lista de endereços e uma série de recomendações para que fosse convidado a tocar nas matinées ou soirées que tanto contavam na atividade musical.

 

O repertório pianístico proporcionado pelas sonatas de Beethoven foi uma das principais causas da mudança de equilíbrio na execução musical, que passou da esfera privada das casas para os salões públicos. Voltadas para ambientes mais íntimos, muitas das sonatas foram consideradas esplêndidas para a interpretação do virtuose em grandes salões. Algumas das primeiras sonatas já apresentavam dificuldades das quais se ressentia o músico amador, e os obstáculos técnicos ficaram mais difíceis de vencer com a Waldstein, a Appassionata e Les Adieux. Mais tarde, a Hammerklavier, Op. 106, parecia banir de vez o músico amador. “Há uma senhora em Viena” — Czerny disse a Beethoven — “que tem praticado sua Sonata em Si Bemol há um mês, e mesmo assim não conseguiu passar do início”. Contudo, a maior parte das sonatas ficou bem ao alcance do amador, que podia assim, a seu modo, interpretá-las: suas dificuldades, na verdade, resultaram numa percepção de contato, ainda que tênue, com o profissional, o que praticamente nenhum outro conjunto de obras sérias permitia. Elas eram um desafio que se podia enfrentar, um ideal a que se podia aspirar, mesmo que, no fim das contas, não se pudesse dominá-las plenamente — nem mesmo, conforme assinalou Artur Schnabel, pelo profissional consumado: nenhuma execução de uma sonata de Beethoven, disse ele, alcançaria a grandeza da própria obra. A música para piano dos maiores românticos, Chopin e Schumann, jamais atingiu a glória plena do sublime levado a sério de que gozam as sonatas de Beethoven. Na segunda metade do século XX, o apreciador médio de música estava familiarizado com as sonatas de Beethoven em sua casa, estimulado pela possibilidade de ouvir ocasionalmente interpretações públicas magníficas (às vezes, nem tanto), à medida que os recitais de piano se tornavam cada vez mais frequentes. Somente quando as gravações finalmente desbancaram a tradição de tocar música em casa é que as sonatas de Beethoven perderam seu status especial, em que o interesse do amador se achava entrelaçado ao do profissional.

 

PROUST, Marcel. Journees de Lecture. In: Contre Sainte-Beuve: précédé de Pastiches et mélanges et suivi de Essais et articles. Édition établie par Pierre Clarac avec la collaboration d’Yves Sandre. Paris: Gallimard, 1971. pp. 162-3.


CHARLES ROSEN (1927-2012)

Aclamado estudioso de música, pianista, crítico literário e professor emérito de Música e Teoria Musical na Universidade de Chicago. Publicou A Geração Romântica (Edusp, 2000), entre outros livros premiados.


Trecho extraído do livro Beethoven’s Piano Sonatas: a Short Companion. New Haven: Yale University Press, 2002. Introdução. pp. 3-7. Reproduzido com permissão do licenciante por meio do PLSclear.
Tradução de A. G. Mendes. 

 

GRAVAÇÕES RECOMENDADAS

 

Beethoven: Complete Piano Sonatas
Paul Lewis
Harmonia Mundi, 2009


Beethoven: Complete Piano Sonatas
Louis Lortie
Chandos, 2010


Beethoven: The Complete Piano Sonatas
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Warner Classics/Parlophone, 2016


Beethoven: Complete Piano Sonatas
Jean-Efflam Bavouzet
Chandos, 2017


Beethoven: Complete Piano Sonatas for Piano & Violin
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Harmonia Mundi, 2009


Beethoven: Complete Piano Sonatas
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Warner Classics, 2020

 

Beethoven: Diabelli Variations
Andreas Staier
Harmonia Mundi, 2012

 

SUGESTÕES DE LEITURA

 

Glenn Stanley (editor)
The Cambridge Companion to Beethoven

Cambridge University Press, 2000

 

John Clubbe
Beethoven: the Relentless Revolutionary

W. W. Norton & Company, 2019

 

Charles Rosen

Beethoven's Piano Sonatas: a Short Companion
Yale University Press, 2001