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ENSAIOS
O ímpeto orquestral como base da nova arte sinfônica de Beethoven
Autor:Martin Geck
04/mar/2020

Gustav Klimt
Alegria, Nobre Centelha Divina (detalhe de O Friso Beethoven), 1902

 

A composição sinfônica de Beethoven irradia páthos e heroísmo, característicos da atmosfera europeia entre 1789 e 1814 (da Revolução Francesa ao Congresso de Viena), e não só porque assimila e elabora elementos da música revolucionária francesa. O mais importante é a representação de grandeza, força criadora e conquistas territoriais. As análises tradicionais de música não costumam, via de regra, dar a devida importância a esses momentos da composição sinfônica de Beethoven porque é comum cultivar a imagem do músico como pioneiro em tornar o processo de composicão o grande tema em si. Entretanto, esse modo de compor, voltado para o processo, também pode ser observado no âmbito da música para piano e da música de câmara, ou mesmo dentro do gênero da ópera. No campo das sinfonias e das aberturas, há algo a mais: o gesto de poder.

 

Esse processo está firmemente associado a uma nova compreensão da orquestra e de sua sonoridade. Enquanto a composição sinfônica anterior a Beethoven persistia, tipicamente, na ideia de primeiro criar uma frase musical e depois instrumentar, após a Terceira Sinfonia (Eroica) e a Quinta essa passa a ser apenas uma verdade, que se contrapõe a outra complementar: o aparato orquestral gera certos desenvolvimentos musicais a partir de seu interior. Isso vale para crescendos, Klangflächen,1 repetições concisas, entre outros, que não fariam sentido nem teriam efeito sem a força da sonoridade da orquestra.

 

Embora a música orquestral do século XVIII já conheça gestos associados a poder, esses aparecem geralmente padronizados em sinfonias em Dó Maior ou Ré Maior, em que o grupo dos trompetistas e timpanistas cria a atmosfera festiva e a aparência de solenidade. Entretanto, não é possível compará-los com os golpes que Beethoven distribui, no sentido literal da palavra. “Dois golpes de pesada cavalaria, que dividem a orquestra como uma beterraba”: eis como Wilhelm von Lenz descreve os dois arroubos da orquestra no início da Eroica2.  Mesmo se o riso fica preso na garganta devido à linguagem militar, a metáfora do aclamado biógrafo de Beethoven de meados do século XIX ilustra como os círculos burgueses cultos da época ouviam as sinfonias do artista. Na realidade, os tutti não são raridade na sua sonoridade orquestral, frequentemente agressiva; no caso do breve prólogo da Eroica, eles não são meros gestos, mas estão em um “nível motívico e temático”3. O mesmo vale para partes individuais dos tímpanos, cuja força explosiva pode ser especialmente notada na Sétima, Oitava e Nona, como também na cena da tempestade na Pastoral. De modo absolutamente novo, Beethoven reserva o emprego do tímpano apenas para essa cena característica, a fim de alcançar um efeito surpreendente.

 

Não podemos ignorar também o uso imoderado que Beethoven faz das indicações de forte ou sforzato. Quem lança um olhar à partitura nota que as marcas correspondentes aparecem mesmo onde são evidentes, pois foram pensadas como uma sequência de três pontos de exclamação para o regente e os músicos. O sforzato (que pode ser traduzido como “muito enfático”) de Beethoven é especialmente chamativo, sendo usado dentro de uma rápida alternância entre forte e piano, ligada a uma síncope ou uma antecipação do tempo forte. O compositor contemporâneo Mauricio Kagel alertou contra a domesticação ou o embelezamento dos sforzati de Beethoven: “Não quero defender a tese de que todos sforzati deveriam tirar o argumento musical dos trilhos, mas eles têm que passar um efeito mais quebradiço, com arestas”.4

 

Essa afirmação aponta para o fato de que em Beethoven nada caminha de maneira habitual; seus acentos específicos marcam manifestações da vontade, que podem ser interpretadas, de um lado, como atos de força espontâneos, individuais e, de outro, mantêm-se vinculados a uma concepção geral refletida e abrangente. Se Beethoven, em seu papel como compositor, realmente se comparou a Napoleão, existem aqui paralelos no sentido de uma imprevisibilidade tática, que está na base de uma estratégia integral coerente.

 

Parte dessa estratégia integral se realiza quando, da Segunda em diante, todas as sinfonias são, a princípio, consideradas “sinfonias finais”: elas oferecem mais do que um final inebriante na medida em que desde o começo parecem (em diferentes graus) apontar para o final — isso fica muito claro na Eroica, na Quinta, na Pastoral, na Sétima e na Nona e, para tanto, não é necessário o acompanhamento de uma sonoridade concentrada como na Quinta ou na Nona; o que importa é o reconhecimento (ou ao menos a suposição) de uma ideia, coroada no final. No caso da Pastoral, trata-se do “Canto dos Pastores” que ilustra a impressão deixada pela estadia no campo como “sentimentos de alegria e gratidão após a tempestade”. É significativo o registro “Senhor, nós lhe agradecemos”, encontrado num de seus cadernos de rascunho, provavelmente indicando que Beethoven considerava resolver o desejo de transcendência do final por meio do uso de vozes humanas, como realmente acontece na Nona.

 

Não é apenas a estrutura formal das sinfonias de Beethoven que ressalta seu caráter dinâmico, decididamente propulsivo; a configuração dos movimentos o torna ainda mais patente. Os temas dos movimentos de abertura — especialmente aqueles da Eroica, da Quinta e da Nona — estão longe de representar uma sequência melódica coerente, mas têm uma configuração tão sucinta, se não beirando o rudimentar, que seu desenvolvimento posterior, no sentido de composição como processo, é quase mandatório.

 

   
     Partitura original da Sinfonia nº 3 com o nome de Napoleão Bonaparte rasurado. O título Eroica foi dado posteriormente.

E não somente isso: interditamos o acesso à composição sinfônica de Beethoven quando destacamos seu caráter dinâmico e um impulso sugestivo à expansão espacial apenas nos processos motívicos e temáticos, como por vezes o faz a musicologia estabelecida, de modo exagerado. A impressão do caráter de processo surge, por um lado, na interação dos motivos; por outro, a partir de uma dinâmica própria, da métrica conflituosa e de uma harmonia que não teme arestas. O ouvinte imparcial fica mais impactado com esses últimos momentos do que com as possíveis relações motívico-temáticas envolvidas: o ritmo é “indiscutivelmente o mais necessário para a compreensão da música”,5 lemos num dos “cadernos de conversas” de Beethoven. Para a criação da arquitetura musical e uma impressão de maior planejamento formal, o conceito harmônico de um movimento é mais decisivo do que a condução da linha melódica, pois os movimentos harmônicos têm efeito imediato também onde talvez não sejam percebidos individualmente. Isso vale para a transição ao tema secundário na abertura da Segunda Sinfonia, que vai, não linearmente, de Ré maior até Lá maior, passando pela dominante da dominante Mi maior, mas, simplificando, articula primeiro Sol maior/Sol menor — um desvio chamado de “poderoso e atemorizador” por Adolf Bernhard Marx6  —, passando por Si maior e Mi maior para finalmente chegar a Lá maior. Trata-se de um detalhe ínfimo do cosmo sinfônico de Beethoven, mas certamente é tão responsável pelo efeito surpreendente gerado pela entrada do tema secundário como o próprio caráter desse tema.

 

Apesar disso, o “esclarecimento sobre a melodia”, que Richard Wagner ensina em 1859 a Felix Draeseke, da “nova escola alemã” e que, portanto, somava-se a todo o tipo de refinamento harmônico, atesta que a importância da melodia na composição sinfônica de Beethoven não deve ser menosprezada. Draeseke relata que, “de maneira totalmente inesperada... numa tarde muito quente de agosto, ele [Wagner] começou a cantar o primeiro movimento da Eroica; tomado por um terrível entusiasmo, continuou cantando, exaltou-se sobremaneira, mas não parou até chegar ao fim da primeira parte. ‘O que é isso?’, ele exclamou para mim, que respondi: ‘A Eroica’. ‘Então, a simples melodia não é suficiente? Será que suas harmonias malucas precisam estar sempre presentes?’”.7 (O que Wagner está querendo dizer fica claro, de modo ímpar, pela canção Ein Ton do Op. 3 de 1854, de seu aluno Peter Cornelius: nessa pequena obra-prima, a voz se mantém do início ao fim na nota Si, enquanto o piano explora todos os registros possíveis de um acompanhamento harmonicamente original).

 

Draeseke prossegue seu relato sobre o encontro com Wagner dizendo que, em seguida, esse lhe disse “de maneira muito calma que o fluxo melódico nas sinfonias de Beethoven corre de modo inexorável e que a partir dessa melodia é possível puxar pela memória toda a sinfonia”.8 Por esses dias, Wagner está concluindo a partitura de Tristão e Isolda, na qual lhe parece meritória principalmente “a mais fina arte da transição gradual”.9 E é notável perceber que, tendo em vista sua própria composição, Wagner se recorde do fluxo melódico de Beethoven. Seu exemplo não foi o Beethoven das harmonias audazes e articulações bruscas, que eram muito admiradas, mas o melodista inexaurível, que consegue segurar seus ouvintes também pelo contínuo do fluxo melódico.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

Como verdadeiro herói, Beethoven virou estátua – muitas estátuas. Em 1884,57 anos após a morte do compositor,

a comunidade alemã de Nova York inaugurou o busto que ofertara ao Central Park (foto). A escultura, feita por Henry Bearer, foi instalada não muito longe do busto de Friedrich Schiller, autor da “Ode à Alegria” e primeira estátua do parque.

 

Quem eram esses ouvintes? Beethoven teve de criar seu público, pois diferentemente de Paris e Londres, não há em Viena por volta de 1800 um apreço significativo pelo gênero sinfonia; não existe sequer uma orquestra “sinfônica” que mereça tal nome. Desse modo, para suas “academias” — ou seja, concertos financiados pelo próprio bolso — Beethoven precisa montar sua orquestra a partir do acervo de músicos vienenses, caso não tenha a sorte de se valer da orquestra privada do príncipe Lobkowitz, que, por exemplo, está à disposição para os ensaios e as primeiras apresentações da Eroica e da Quarta Sinfonia.

 

Beethoven precisa não somente organizar sua orquestra, ele tem de criar também seu público. A afirmação de Fischenich [...], de que seu jovem amigo de Bonn era partidário do “grandioso e do sublime” não quer dizer que o ideal correspondente encontre ressonância de pronto. Tal recepção é improvável, a começar pelo fato de que a novidade na composição sinfônica de Beethoven não está apenas no crescente ímpeto sinfônico, mas numa linguagem sonora altamente diferenciada no detalhe e muito mais facetada em sua semântica — ou seja, naquilo que ele quer expressar — do que aquela de seus antecessores. É por isso que, de início, os críticos de suas sinfonias as avaliam de maneira bastante cuidadosa, por vezes afirmando que, embora ninguém estivesse imune à grandeza de Beethoven, descrever adequadamente essa grandeza não era possível.

 

De todo modo, logo se percebeu aquilo que o pensador e crítico musical Paul Bekker apontou no início do século XX. Para ele, desde Beethoven, “a apresentação de uma sinfonia corresponde a uma assembleia popular musical” — ou seja, “uma reunião na qual um sentimento de comunidade, expresso pela música, se torna vivo e ativo”.10 Ao menos na estreia muito festejada da Sétima, em 1813, a avaliação póstuma de Bekker recebeu uma comprovação histórica concreta. À época, muitos ouvintes consideraram que a obra reproduzia o arrebatamento festivo que as mais recentes vitórias militares da coalisão das potências europeias contra Napoleão tinham ensejado.

 

1 N. do T.: Literalmente “área de som” ou sound sheet – é um som musical composto por tantas notas ou vozes que, nessa soma de tons individuais, não é possível definir mais do que um determinado som complexo. Como ilustração, pode-se pensar em Atmosphères, de György Ligeti.
2 GECK, Martin; SCHLEUNING, Peter. Geschrieben auf Bonaparte: Beethovens Eroica – Revolution, Reaktion, Rezeption. Reinbek: Rowohlt, 1989, p. 279.
3 VOSS, Egon. “Die Beethovensche Symphonie. Skizze einer allgemeinen Charakteristik”. In: ULM, Renate (org.). Die 9 Symphonien Beethovens. Entstehung, Deutung, Wirkung. Munique/Kassel: dtv/Bärenreiter Verlag, 1994, p. 35.
4 FIEBIG, Paul (org.). Über Beethoven. Von Musikern, Dichtern und Liebhabern. Eine Anthologie. Stuttgart: Reclam, 1993. pp. 297-8.

5 REXROTH, Dieter. Beethovens Symphonien. Ein musikalischer Werkführer. Munique: C. H. Beck, 2005. p. 49.

6 MARX, Adolf Bernard. Ludwig van Beethoven: Leben und Schaffen. vol. 1, 2a ed. Berlim: Otto Janke, 1863. pp. 212-3.

7 GECK, Martin; SCHLEUNING, Peter. Geschrieben auf Bonaparte: Beethovens Eroica – Revolution, Reaktion, Rezeption. Reinbek: Rowohlt, 1989. p. 265.

8 ROEDER, Erich. Felix Draeseke. Dresden: W. Limpert, 1932. p. 106.

9 WAGNER, Richard. DÜRRER, Martin (org.). Sämtliche Briefe. vol. 11. Wiesbaden: Breitkopf & Härtel, 1999. p. 329.

10 BEKKER, Paul. Die Sinfonie von Beethoven bis Mahler. Berlim: Schuster & Loeffler, 1918. p. 15.

 

MARTIN GECK

Professor emérito de musicologia na Universidade Técnica de Dortmund (TU Dortmund), na Alemanha. Dentre seus livros sobre a história da música alemã nos séculos XVII, XVIII e XIX destacam-se Robert Schumann: Mensch und Musiker der Romantik (2012) e Richard Wagner: A Life in Music (2013).
 

Texto extraído do livro Die Sinfonien Beethovens – Neun Wege zum Ideenkunstwerk. Hildesheim: Georg Olms Verlag, 2015. pp. 1722. A Revista Osesp agradece à editora pela permissão para reproduzir este excerto.

Tradução de Claudia Abeling

 

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Beethoven: The Sympnhonies and Reflections

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SUGESTÕES DE LEITURA

 

Lewis Lockwood
Beethoven's Sympnhonies: An Artistic Vision
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Sanford Friedman

Conversations with Beethoven
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Theodor W. Adorno

Beethoven: The Philosophy of Music
Polity, 2002

 

Charles Rosen
The Classical Style
W. W. Norton & Company, 1998

 

Samuel Titan Jr.
Nona Sinfonia: Memória e Antecipação
in Revista Osesp, ed. 2011
Disponível em: osesp.art.br/ensaios.aspx?Ensaio=27